Valor Econômico
Barbárie do Hamas dificulta o discurso
pacifista que está na raiz da tradicional postura diplomática brasileira
A dificuldade em distinguir a causa palestina
da condenação clara ao terrorismo do Hamas acua a esquerda nas redes sociais e
na opinião pública. Do ponto de vista político, essa é a principal consequência
doméstica da barbárie desencadeada pelos extremistas palestinos em Israel em 7
de outubro, estopim de uma guerra com desdobramentos ainda imprevisíveis.
Para ficar nas manifestações oficiais: o PT lamentou “a escalada de violência envolvendo palestinos e israelenses”. O PCdoB disse condenar “os ataques realizados por determinação do premier de Israel, Benyamin Netanyahu, contra a Palestina, como resposta ao contra-ataque organizado pelo Hamas”. O Psol deplorou “o apartheid sionista de Israel que vem empobrecendo o povo palestino”. O Rede disse condenar o terrorismo e o fundamentalismo de Netanyahu e do Hamas. O PDT não se manifestou. O PSB é a exceção, com o presidente da sigla, Carlos Siqueira se solidarizando com Israel em postagem nas redes. Salvo Siqueira, não se fez diferenciação entre culpados e vítimas.
Política externa não costuma ser citada como
assunto relevante no debate doméstico, mas esse é um conceito que precisa ser
revisto. Tem se tornado cada vez mais importante, como constata o professor do
Instituto de Relações Internacionais da USP Feliciano Sá Guimarães, orientador
da pesquisadora Anna Mello em uma tese de doutorado sobre o tema que será
apresentada também no Kings College de Londres.
Mello monitorou 5 milhões de tuítes
brasileiros sobre 50 temas de política externa entre 2018 e 2023. “Os temas
internacionais são motivadores de engajamento e coesionam campos ideológicos,
que constroem uma visão de política externa consistente”, comenta Feliciano. E
a balança pende com força para a direita. Eles observaram que a causa palestina
tinha praticamente sumido desse debate.
Uma pesquisa de monitoramento nas redes
sociais feito pela empresa Torabit, a pedido desta coluna, mostra a mescla da
agenda internacional com a nacional. A plataforma analisou 85.192 postagens da
data do começo dos ataques até as 11 horas de 11 de outubro no Facebook,
Twitter e Instagram. Desse total, apenas 13% foram de caráter informativo, sem
juízo de valor. Uma maioria de 68,6% das postagens foram de solidariedade ao
Estado de Israel, 20,8% a causa palestina e apenas 10,6% deram apoio à solução
de dois Estados, que é a tradicionalmente apoiada pela diplomacia brasileira.
Hamas e terrorismo aparecem em 33% das menções. Citações ao presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e à esquerda partem do bloco solidário a Israel. Essas
menções em geral ligam o atual governo e seus apoiadores ao Hamas.
A guerra em Israel e Gaza não é um conflito
comum. Não se trata apenas de uma guerra discutida por especialistas, que
buscam compreender razões de Estado que levam o Itamaraty a emitir comunicados
serenos, mesmo com a existência de vítimas brasileiras.
Esta guerra move o imaginário nacional de uma
forma mais intensa do que outro enfrentamento em curso, o da Ucrânia. E com
facilidade maior na tomada de posições. A guerra no Leste Europeu divide a
direita e a esquerda. A do Oriente Médio coloca a esquerda na defensiva e a
direita no desafogo, depois da ressaca golpista de 8 de janeiro.
O conflito entre árabes e israelenses há
muito tempo nucleia a esquerda em torno do primeiro polo e a direita em torno
do segundo. Isso se dá em duas camadas. A primeira é a política: de um lado há
uma luta antiimperialista, contra a discriminação transformada em política de
Estado; a favor da autodeterminação dos povos. Do outro, a defesa do Ocidente,
em uma perspectiva de choque das civilizações.
A segunda camada é a cultural e religiosa.
Ainda que entre israelenses e árabes haja fundamentalismo dos dois lados, esta
não é a realidade brasileira. A esquerda é em sua maioria laica e cada vez mais
voltada para políticas identitárias, com pautas que conflitam com a visão
religiosa. O Brasil é um país que se torna mais evangélico, e dentro do
segmento evangélico, mais pentecostal. Esse é um dos pilares da direita no
País.
Não raro se vêem manifestantes cobertos pela
bandeira da estrela de Davi em atos conservadores. É o sionismo cristão, que se
alimenta do milenarismo. Guerras em Israel apontam para o fim dos tempos, a
volta de Cristo. “Israel é visto como um relógio escatológico”, comentar o
pastor batista Kenner Terra, do Rio de Janeiro. E também é a Terra Santa é o
que os evangélicos têm de mais perto com a ideia de santuário, como aponta o
pastor presbiteriano Valdinei Ferreira. Como observou o pastor batista Ed
Kivitz, não se difencia o Estado de Israel moderno com o judaísmo do Velho
Testamento. “Falta letramento à realidade”, afirmou.
A barbárie do Hamas também dificulta o
discurso pacifista que está na raiz da tradicional postura diplomática
brasileira e complica o estabelecimento da equivalência entre os atos
terroristas e o torpedeamento da solução de dois Estados arquitetada por
Netanyahu. É difícil, para não dizer impossível, relativizar o episódio de
agora como mais uma consequência da ocupação de territórios palestinos por
Israel, condenada pela ONU desde 1967.
Atos de agressão como o do Hamas legitimam
guerras. Desta forma se legitimaram a Primeira Guerra Mundial, cujo estopim foi
um ato terrorista, ou a Guerra contra o Talibã, em 2001, depois da queda das
Torres Gêmeas. O desenrolar desses conflitos, com toda sua sucessão de
infâmias, recoloca posteriormente o apelo pela paz.
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