sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Fernando Abrucio* - O radicalismo vai vencer o jogo político?

Valor Econômico

O cenário se modificou nos últimos anos, com a ascensão da lógica da guerra permanente

O radicalismo tornou-se um dos maiores desafios da política contemporânea. Esse modelo privilegia o confronto e a polarização em vez da negociação e do compromisso. Por muitas vezes ele esteve presente e forte na História, mas a chamada terceira onda de democratização, iniciada com a Revolução dos Cravos em Portugal (1974), e o fim da Guerra Fria inauguraram uma breve era em que havia sempre a esperança da vitória dos acordos e do diálogo nos planos nacional e internacional, mesmo quando os conflitos permaneciam. O cenário se modificou nos últimos anos, com a ascensão da lógica da guerra permanente, que conquista cada vez mais corações e mentes, votos e armas.

A chamada pax americana não foi, evidentemente, um mundo róseo ou o fim da História. Houve guerras nos Bálcãs e no Iraque, vários atentados terroristas, o 11 de Setembro, a invasão do Afeganistão, algumas crises econômicas internacionais, a derrota da paz em Israel e a manutenção de importantes regimes autoritários, como a China ou a Arábia Saudita. Mesmo assim, havia dois fatores distintivos do período: a força de lideranças democráticas em várias partes do mundo, capazes de estabelecer algum nível de diálogo nacional e internacional, e uma maior cooperação entre potências globais e regionais, permitindo a entrada da China na Organização Mundial do Comércio e a ascensão dos Brics.

Desde a crise econômica de 2008 tem havido um declínio da democracia e da interlocução internacional. O entendimento desse fenômeno passa pela ascensão de regimes autoritários ou iliberais, bem como pela crise de relacionamento dos países líderes do eixo ocidental - EUA e Europa - com a Rússia e a China, mas tem seu elemento-chave num modus operandi político que pode ser denominado de lógica da guerra permanente. Trata-se de um tipo de radicalismo que joga contra a democracia e os acordos internacionais em nome de uma visão de mundo baseada no confronto e na violência contra os adversários.

No plano interno dos países, o radicalismo presente na lógica da guerra permanente teve na ascensão da extrema direita a sua mola propulsora. São grupos radicais - fascistas para alguns - que adotaram um discurso de luta cultural e moral não só contra a esquerda, mas contra valores básicos construídos desde o Iluminismo. Não estão apenas combatendo os “comunistas”, como gostam de dizer. Vão muito além e são contrários aos que pensam diferente, denunciando-os cotidianamente em praça pública - leia-se: nas redes sociais. Desse modo, não há nenhum espaço para se negociar e encontrar um meio-termo com os adversários. Tal visão de mundo mata o lado mais rico da política, especialmente nas democracias: a arte de se construir compromissos entres os grupos divergentes.

Por esse caminho radicalizante, substitui-se o pluralismo político que ancorou o jogo democrático desde o final da Segunda Guerra Mundial pela polarização imutável. Uma verdadeira cruzada moral dos “puros” contra os “impuros” alimenta essa lógica da guerra permanente. Contra a ideia de que a democracia é o terreno da competição legítima entre opostos e de que a alternância entre grupos é saudável, estabelece-se uma única forma de política: ou minha posição vence, ou é preciso tornar ilegítimo o outro lado. A extrema direita, no fundo, não aceita a incerteza intrínseca aos regimes democráticos, caminhando, de um modo ou de outro, para soluções autoritárias, seja para inviabilizar o governo dos rivais, seja para evitar qualquer controle institucional dos seus governantes.

A extrema direita é a principal propulsora da lógica da guerra permanente como norteadora do jogo político, porém por vezes parcelas da esquerda também adotam tal padrão, principalmente em suas batalhas por cancelamento nas redes sociais. Negar-se ao diálogo, à possibilidade de estabelecer compromissos entre os diferentes ou à busca pelo convencimento é fazer o jogo dos extremistas. Ao fim e cabo, esse é um erro fatal, porque naturaliza a radicalização e a polarização que movimentos antissistema e reacionários querem que comandem a política contemporânea. Por isso, aos democratas genuínos só resta sempre apostar no diálogo amplo e evitar o comportamento de menosprezo à arte da política em nome de imperativos morais absolutos.

A ascensão do extremismo político no plano interno dos países semeou o radicalismo no âmbito internacional. Trump iniciou a batalha sem fim contra a China, gerando uma animosidade entre americanos e chineses que impacta negativamente o mundo todo. Putin destruiu todos os seus inimigos políticos - alguns literalmente - em nome de uma ideologia moralista e extremista, ganhando um poder irrefreável que lhe permitiu a aventura inconsequente da invasão da Ucrânia. O radicalismo terrorista do Hamas, alimentado pelo modelo totalitarista dos líderes iranianos, produziu um massacre terrível de inocentes, e terá como resposta a promessa de carnificina advinda do governante israelense, um pretendente explícito ao autoritarismo.

A insensatez tomou conta da ordem internacional e a lógica da guerra permanente, sem espaço para o diálogo e o compromisso entre opositores, está prevalecendo. A consequência disso não será a vitória inconteste de um dos grupos, que provavelmente se autointitula como o “lado certo da História”. Ao contrário, os resultados mais prováveis serão a piora do cenário econômico global, o crescimento do número de mortes e do caos nos ambientes de guerra, bem como a incapacidade para guiar o mundo para as batalhas que favorecem a todos, como a luta contra a desigualdade e a mudança climática. China, EUA, Rússia, Israel, Palestina, nenhum deles ou qualquer outro ganhará com o radicalismo crescente. O futuro imediato do século XXI só caminhará para uma trilha mais positiva se for recuperada a política como parteira de acordos amplos pela sobrevivência e desenvolvimento do maior número possível de nações.

E o Brasil, como fica diante desse cenário? Três questões são centrais diante da ascensão da guerra permanente como variável-chave da ordem política atual. Em primeiro lugar, é preciso ter grande capacidade de equilíbrio em sua política externa. No fato conflituoso mais recente, é fundamental ressaltar o caráter terrorista da ação do Hamas, que não representa por completo a posição do povo palestino, do mesmo modo que é necessário lutar para uma solução negociada para o curto e o longo prazos. No plano imediato, atuar para evitar tanto o maior número possível de mortes como o prolongamento dessa crise. Numa perspectiva temporal mais ampla, ajudar a juntar o maior número possível de apoios para a convivência pacífica e soberana desses dois povos, buscando isolar os que não querem nem o Estado de Israel nem uma nação palestina.

A posição brasileira deverá se basear na defesa incondicional dos direitos humanos de todos e evitar a tomada de posições em razão de amizades políticas. Ademais, o Brasil não será o ator central para resolver esse conflito, cabendo mais aos Estados Unidos, à China e aos países árabes essa posição. Dessa maneira, qualquer ação mais espalhafatosa, mesmo que bem-intencionada, deverá ser trocada pela parcimônia.

Uma segunda questão que deriva do fortalecimento da lógica da guerra permanente diz respeito aos atores que defendem esse modelo no Brasil, particularmente aqueles que atuaram em prol de um golpe de Estado. Não será possível garantir as bases democráticas do país se não houver uma punição dos extremistas golpistas. A política deve se lastrear principalmente na busca do acordo e do compromisso, contudo, quando está em jogo a própria sobrevivência da democracia, as ações têm de ser exemplares, para evitar que o radicalismo da extrema direita volte a se expressar no futuro próximo pela via antidemocrática.

O ponto central nesse cenário de radicalismo relaciona-se a uma terceira questão: como recuperar a política brasileira para que ela funcione por meio de um cálculo responsável em prol do diálogo e do compromisso? Os principais líderes políticos não podem se esquecer dos resultados calamitosos do extremismo bolsonarista, em particular sua negação constante da política institucional e da conversa entre os diferentes. É necessário adotar um modelo oposto a esse, que procure a construção de consensos, em vez de apostar na polarização e na definição de um caminho com apenas um vencedor. Mais interlocução contínua entre os diferentes e menos ameaças de ataque ao outro, eis a fórmula para sairmos melhores dessa crise nacional e internacional de grande monta.

Uma nova política não será para alijar a esquerda, a direita ou o centro democráticos do jogo político. Ela deve, em vez disso, procurar o que há de comum e construir pontes para uma posição que não signifique uma perda substantiva para nenhum grupo político e social significativo. A radicalização que houve nas últimas semanas no Congresso Nacional, numa aliança estratégica entre setores do Centrão com o bolsonarismo, poderá gerar um desastre para o país no momento internacional mais delicado desde o fim da Guerra Fria. A história recente está mostrando que a lógica da guerra permanente só tem produzido votos para os radicais e enfraquecido os democratas de diversos matizes. É nisto que deveriam pensar os chefes dos Poderes em Brasília.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

 

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