Valor Econômico
O cenário se modificou nos últimos anos, com
a ascensão da lógica da guerra permanente
O radicalismo tornou-se um dos maiores
desafios da política contemporânea. Esse modelo privilegia o confronto e a
polarização em vez da negociação e do compromisso. Por muitas vezes ele esteve
presente e forte na História, mas a chamada terceira onda de democratização,
iniciada com a Revolução dos Cravos em Portugal (1974), e o fim da Guerra Fria
inauguraram uma breve era em que havia sempre a esperança da vitória dos
acordos e do diálogo nos planos nacional e internacional, mesmo quando os
conflitos permaneciam. O cenário se modificou nos últimos anos, com a ascensão
da lógica da guerra permanente, que conquista cada vez mais corações e mentes,
votos e armas.
A chamada pax americana não foi, evidentemente, um mundo róseo ou o fim da História. Houve guerras nos Bálcãs e no Iraque, vários atentados terroristas, o 11 de Setembro, a invasão do Afeganistão, algumas crises econômicas internacionais, a derrota da paz em Israel e a manutenção de importantes regimes autoritários, como a China ou a Arábia Saudita. Mesmo assim, havia dois fatores distintivos do período: a força de lideranças democráticas em várias partes do mundo, capazes de estabelecer algum nível de diálogo nacional e internacional, e uma maior cooperação entre potências globais e regionais, permitindo a entrada da China na Organização Mundial do Comércio e a ascensão dos Brics.
Desde a crise econômica de 2008 tem havido um
declínio da democracia e da interlocução internacional. O entendimento desse
fenômeno passa pela ascensão de regimes autoritários ou iliberais, bem como
pela crise de relacionamento dos países líderes do eixo ocidental - EUA e
Europa - com a Rússia e a China, mas tem seu elemento-chave num modus operandi
político que pode ser denominado de lógica da guerra permanente. Trata-se de um
tipo de radicalismo que joga contra a democracia e os acordos internacionais em
nome de uma visão de mundo baseada no confronto e na violência contra os
adversários.
No plano interno dos países, o radicalismo
presente na lógica da guerra permanente teve na ascensão da extrema direita a
sua mola propulsora. São grupos radicais - fascistas para alguns - que adotaram
um discurso de luta cultural e moral não só contra a esquerda, mas contra
valores básicos construídos desde o Iluminismo. Não estão apenas combatendo os
“comunistas”, como gostam de dizer. Vão muito além e são contrários aos que
pensam diferente, denunciando-os cotidianamente em praça pública - leia-se: nas
redes sociais. Desse modo, não há nenhum espaço para se negociar e encontrar um
meio-termo com os adversários. Tal visão de mundo mata o lado mais rico da
política, especialmente nas democracias: a arte de se construir compromissos
entres os grupos divergentes.
Por esse caminho radicalizante, substitui-se
o pluralismo político que ancorou o jogo democrático desde o final da Segunda
Guerra Mundial pela polarização imutável. Uma verdadeira cruzada moral dos
“puros” contra os “impuros” alimenta essa lógica da guerra permanente. Contra a
ideia de que a democracia é o terreno da competição legítima entre opostos e de
que a alternância entre grupos é saudável, estabelece-se uma única forma de
política: ou minha posição vence, ou é preciso tornar ilegítimo o outro lado. A
extrema direita, no fundo, não aceita a incerteza intrínseca aos regimes
democráticos, caminhando, de um modo ou de outro, para soluções autoritárias,
seja para inviabilizar o governo dos rivais, seja para evitar qualquer controle
institucional dos seus governantes.
A extrema direita é a principal propulsora da
lógica da guerra permanente como norteadora do jogo político, porém por vezes
parcelas da esquerda também adotam tal padrão, principalmente em suas batalhas
por cancelamento nas redes sociais. Negar-se ao diálogo, à possibilidade de
estabelecer compromissos entre os diferentes ou à busca pelo convencimento é
fazer o jogo dos extremistas. Ao fim e cabo, esse é um erro fatal, porque
naturaliza a radicalização e a polarização que movimentos antissistema e
reacionários querem que comandem a política contemporânea. Por isso, aos
democratas genuínos só resta sempre apostar no diálogo amplo e evitar o
comportamento de menosprezo à arte da política em nome de imperativos morais
absolutos.
A ascensão do extremismo político no plano
interno dos países semeou o radicalismo no âmbito internacional. Trump iniciou
a batalha sem fim contra a China, gerando uma animosidade entre americanos e
chineses que impacta negativamente o mundo todo. Putin destruiu todos os seus
inimigos políticos - alguns literalmente - em nome de uma ideologia moralista e
extremista, ganhando um poder irrefreável que lhe permitiu a aventura
inconsequente da invasão da Ucrânia. O radicalismo terrorista do Hamas,
alimentado pelo modelo totalitarista dos líderes iranianos, produziu um
massacre terrível de inocentes, e terá como resposta a promessa de carnificina
advinda do governante israelense, um pretendente explícito ao autoritarismo.
A insensatez tomou conta da ordem
internacional e a lógica da guerra permanente, sem espaço para o diálogo e o
compromisso entre opositores, está prevalecendo. A consequência disso não será
a vitória inconteste de um dos grupos, que provavelmente se autointitula como o
“lado certo da História”. Ao contrário, os resultados mais prováveis serão a
piora do cenário econômico global, o crescimento do número de mortes e do caos
nos ambientes de guerra, bem como a incapacidade para guiar o mundo para as
batalhas que favorecem a todos, como a luta contra a desigualdade e a mudança
climática. China, EUA, Rússia, Israel, Palestina, nenhum deles ou qualquer
outro ganhará com o radicalismo crescente. O futuro imediato do século XXI só
caminhará para uma trilha mais positiva se for recuperada a política como
parteira de acordos amplos pela sobrevivência e desenvolvimento do maior número
possível de nações.
E o Brasil, como fica diante desse cenário?
Três questões são centrais diante da ascensão da guerra permanente como
variável-chave da ordem política atual. Em primeiro lugar, é preciso ter grande
capacidade de equilíbrio em sua política externa. No fato conflituoso mais
recente, é fundamental ressaltar o caráter terrorista da ação do Hamas, que não
representa por completo a posição do povo palestino, do mesmo modo que é
necessário lutar para uma solução negociada para o curto e o longo prazos. No
plano imediato, atuar para evitar tanto o maior número possível de mortes como
o prolongamento dessa crise. Numa perspectiva temporal mais ampla, ajudar a
juntar o maior número possível de apoios para a convivência pacífica e soberana
desses dois povos, buscando isolar os que não querem nem o Estado de Israel nem
uma nação palestina.
A posição brasileira deverá se basear na
defesa incondicional dos direitos humanos de todos e evitar a tomada de
posições em razão de amizades políticas. Ademais, o Brasil não será o ator
central para resolver esse conflito, cabendo mais aos Estados Unidos, à China e
aos países árabes essa posição. Dessa maneira, qualquer ação mais
espalhafatosa, mesmo que bem-intencionada, deverá ser trocada pela parcimônia.
Uma segunda questão que deriva do
fortalecimento da lógica da guerra permanente diz respeito aos atores que
defendem esse modelo no Brasil, particularmente aqueles que atuaram em prol de
um golpe de Estado. Não será possível garantir as bases democráticas do país se
não houver uma punição dos extremistas golpistas. A política deve se lastrear
principalmente na busca do acordo e do compromisso, contudo, quando está em
jogo a própria sobrevivência da democracia, as ações têm de ser exemplares,
para evitar que o radicalismo da extrema direita volte a se expressar no futuro
próximo pela via antidemocrática.
O ponto central nesse cenário de radicalismo
relaciona-se a uma terceira questão: como recuperar a política brasileira para
que ela funcione por meio de um cálculo responsável em prol do diálogo e do
compromisso? Os principais líderes políticos não podem se esquecer dos
resultados calamitosos do extremismo bolsonarista, em particular sua negação
constante da política institucional e da conversa entre os diferentes. É
necessário adotar um modelo oposto a esse, que procure a construção de
consensos, em vez de apostar na polarização e na definição de um caminho com
apenas um vencedor. Mais interlocução contínua entre os diferentes e menos
ameaças de ataque ao outro, eis a fórmula para sairmos melhores dessa crise
nacional e internacional de grande monta.
Uma nova política não será para alijar a
esquerda, a direita ou o centro democráticos do jogo político. Ela deve, em vez
disso, procurar o que há de comum e construir pontes para uma posição que não
signifique uma perda substantiva para nenhum grupo político e social
significativo. A radicalização que houve nas últimas semanas no Congresso
Nacional, numa aliança estratégica entre setores do Centrão com o bolsonarismo,
poderá gerar um desastre para o país no momento internacional mais delicado
desde o fim da Guerra Fria. A história recente está mostrando que a lógica da
guerra permanente só tem produzido votos para os radicais e enfraquecido os
democratas de diversos matizes. É nisto que deveriam pensar os chefes dos
Poderes em Brasília.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política
pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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