O Globo
Debate de ideias movido a reflexão foi
substituído por um jogo de signos que exibimos nas redes. Esse jogo não tolera
ambiguidades
Na noite de terça-feira, já circulavam pelas
redes do país as imagens de um grupo de alunos na PUC-Rio que atacavam o
professor Michel Gherman, do Departamento de Sociologia da UFRJ.
— Não nos sentimos representados por ele —
afirmou uma das estudantes.
O debate era sobre o brutal ataque do Hamas
no sábado, dia 7, em Israel. A aluna, judia. Gherman, também.
— Antissemita — afirmou outro.
Gherman é especialista no estudo do
antissemitismo. Houve quem lhe pedisse que deixasse a PUC.
Os vídeos verticais que flagram o momento em que alguém lacra, critica com veemência, em que alguém se impõe moralmente ao outro fazem parte de um rito digital. Os vídeos são necessários, na internet, para que torcidas se formem. Os a favor, os contra. Esses vídeos são mostra de quanto se perdeu de qualidade no debate público. Na democracia.
Há três chaves para compreender o fenômeno.
Duas estão no que é falado pelos estudantes. Michel Gherman “não os representa”
e é “antissemita”. A terceira se mostra nas centenas, possivelmente milhares,
de mensagens nas redes sociais e inúmeros grupos no WhatsApp.
Ele é o professor que, sendo judeu, defende o Hamas.
Num dos vídeos, Gherman não poderia ser mais
contundente:
— Eu, defender o Hamas? Você é louco?
Ele, como muitos, perdeu gente próxima no
atentado. Como especialista em antissemitismo, classifica o Hamas como
organização antissemita. Como pode, na internet, se implantar confusão tão
grande? Em que um professor é retratado como tendo opinião radicalmente oposta
à que expressa com firmeza? Mesmo tendo assistido ao discurso, há ainda quem
rubrique embaixo: pró-Hamas.
Um manifesto vindo da esquerda universitária,
antissionista e em defesa dos palestinos, apoiou o professor. Gherman é
sionista.
O cientista político Francis Fukuyama bate na
tecla de que a questão identitária vai muito além de grupos minoritários. Toda
política tornou-se identitária. O debate de ideias movido a reflexão foi
substituído por um jogo de signos que exibimos nas redes. Esse jogo não tolera
ambiguidades, sutilezas. É preciso ser preto ou branco. Tons de cinza ou outras
cores são heresia que a política nas redes não é capaz de processar.
Quando uma aluna diz à mesa que aquele
professor não “a representa”, é isso que ela está expressando. Sua expectativa
não é ouvir um especialista tentando analisar com argumentos que a surpreendam,
que a tirem do conforto, que a forcem a buscar uma resposta. Sua expectativa é
que quem esteja na mesa repita, para seu conforto, exatamente o que ela já
acha. É por isso, também, que outro aluno chama Gherman de antissemita. Porque
a identidade “ser judeu” é étnica, é política, é cultural e vem com um conjunto
restrito de opiniões. Ou pensa exatamente aquilo ou então não pertence ao
grupo. Mais: é contra o grupo.
Talvez Gherman seja do tempo em que, como diz
o provérbio judaico, entre dois rabinos havia três opiniões.
Em agosto, o cientista político André Lajst
foi impedido de falar por estudantes de esquerda na Universidade Federal do
Amazonas. Lá, era o contrário. Outro especialista em Israel, com opiniões
distintas das de Gherman, mas desta vez quem não conseguiu lidar com o
contraste de ideias foi a esquerda. “Ideólogo sionista expulso por
antifascistas”, dizia uma das manchetes celebratórias que circulou pelas redes.
Lajst é um moderado, com duras críticas ao
governo Netanyahu. Mas não é de esquerda. Sionista, sim, ele é. Como Gherman.
Como muita gente. Como, aliás, este colunista. Só que a internet, portanto a
política corrente, não tolera aquilo que complica.
O ruído identitário quer calar a reflexão de
que o mundo precisa como nunca.
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