domingo, 29 de outubro de 2023

Dorrit Harazim - Tarde demais?

O Globo

Quase uma semana depois da explosão em Gaza, o New York Times publicou um esclarecimento sobre a manchete apressada

No comecinho da tarde de terça-feira, 17 de outubro, quando as primeiras imagens do inimaginável cruzavam o mundo — o principal hospital de Gaza fora atingido por uma explosão —, o New York Times publicou sua primeira versão do horror:

— Ataque israelense mata centenas em hospital, dizem autoridades palestinas — dizia a manchete on-line.

De pronto, um editor do centenário jornalão-referência fez saber sua posição pela rede interna do matutino:

— Penso que podemos ser um pouco mais diretos no lide (nome do parágrafo inicial de um texto jornalístico).

Sugeriu o seguinte fraseado:

— Pelo menos 500 pessoas foram mortas na terça-feira por um ataque aéreo de Israel a um hospital na cidade de Gaza, dizem autoridades palestinas.

Em qualquer redação confrontada com a avalanche de notícias simultâneas, decisões de alta tensão exigem uma batida de martelo final. No caso acima, um dos editores do Times propôs matizar a afirmação, dando espaço à possibilidade de novas informações esclarecerem a explosão. Um dos repórteres aquartelado em Jerusalém também recomendou maior cautela. O editor de Notícias, porém, foi peremptório no gerúndio:

— Estamos atribuindo.

O jornal se considerava escudado ao atribuir a informação ao Hamas, a organização terrorista que governa o enclave. Ao final, segundo apurou a revista Vanity Fair, a voz mais arrazoada partiu do editor de Internacional:

— Não podemos nos atrelar à atribuição de algo tão grande a uma só fonte e simplesmente publicar a notícia no alto da página sem tentar checar sua veracidade. Atribuir a informação no final do parágrafo não nos servirá de defesa, sairemos chamuscados se estivermos errados.

A manchete apressada só foi removida do site horas depois.

Tarde demais.

Quase uma semana depois do ocorrido, o conceituado matutino publicou um esclarecimento assinado pelo editor executivo Joseph Kahn:

— Dada a natureza sensível do noticiário (...), os editores do Times deveriam ter tido maior cuidado na apresentação inicial [dos fatos] e ter sido mais explícitos quanto ao que, efetivamente, foi verificado.

BBC, que em conjunto com boa parte da imprensa mundial ventilara a versão difundida pelo Hamas, também veio a público:

— Mesmo na velocidade acelerada da situação em curso, foi um erro especular sobre as possíveis causas [do ataque], e nos desculpamos por isso.

O Wall Street Journal, as redes noticiosas Al Jazeera e CNN, as veteranas agências Associated Press e Reuters fizeram cara de paisagem.

Como se sabe, a versão inicial para a causa da explosão no hospital Al-Ahli Arab abarrotado de pacientes e civis em busca de guarida está a cada dia mais desacreditada. Não pela inconsistente “peça de evidência” apresentada pelo governo de Benjamin Netanyahu e oficialmente encampada por Joe Biden, mas pela própria negativa do Hamas em apresentar ao mundo uma partícula sequer do projétil que diz ter transformado o hospital em cemitério. Por ora, os próprios serviços de inteligência dos Estados Unidos trabalham com afinco a hipótese de a explosão ter derivado da ruptura de um foguete palestino desgovernado, lançado a partir de Gaza.

Tarde demais. O mundo árabe e islâmico inflamou-se, fez voz uníssona diante do martírio abissal, e real, de palestinos indefesos, e a geopolítica no Oriente Médio se reordenou às pressas diante de tamanha dor. Evoca-se aqui a responsabilidade individual e coletiva da imprensa porque a guerra naquelas terras bíblicas ainda está longe de ter esgotado seu potencial de horror. E, portanto, de manipulação.

O ataque-surpresa de 1.500 terroristas do Hamas a 20 vilarejos e postos militares israelenses, lançado três semanas atrás, deixou um rastro de 1.400 civis executados individualmente, a sangue-frio. Fez também 222 reféns — entre vivos e cadáveres, estrangeiros e israelenses, de crianças a octogenários —, cujo destino é negociado como espólio ou trunfo de guerra. A resposta armada do governo humilhado de Netanyahu desviou-se claramente do “direito à defesa” contra o agressor e há 21 dias sujeita a população civil de Gaza a uma vingança coletiva de desumanidade máxima. À falta de chão, água, comida, combustível, medicamentos e ar para respirar, veio juntar-se, na sexta-feira, o bloqueio total de telefonia, internet e energia no enclave. A noite virou breu, e fez-se um silêncio pegajoso no enclave, enquanto tanques de Israel abriam caminho para uma escalada maior.

De um fato o mundo não pode mais escapar: os palestinos não são um problema, são um povo. Um povo que precisa de um Estado. Um Estado que não quer ser terrorista.


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