O Globo
Quase uma semana depois da explosão em Gaza,
o New York Times publicou um esclarecimento sobre a manchete apressada
No comecinho da tarde de terça-feira, 17 de
outubro, quando as primeiras imagens do inimaginável cruzavam o mundo — o
principal hospital de Gaza fora atingido
por uma explosão —, o New York Times publicou sua primeira versão do horror:
— Ataque israelense mata centenas em
hospital, dizem autoridades palestinas — dizia a manchete on-line.
De pronto, um editor do centenário
jornalão-referência fez saber sua posição pela rede interna do matutino:
— Penso que podemos ser um pouco mais diretos
no lide (nome do parágrafo inicial de um texto jornalístico).
Sugeriu o seguinte fraseado:
— Pelo menos 500 pessoas foram mortas na terça-feira por um ataque aéreo de Israel a um hospital na cidade de Gaza, dizem autoridades palestinas.
Em qualquer redação confrontada com a
avalanche de notícias simultâneas, decisões de alta tensão exigem uma batida de
martelo final. No caso acima, um dos editores do Times propôs matizar a
afirmação, dando espaço à possibilidade de novas informações esclarecerem a
explosão. Um dos repórteres aquartelado em Jerusalém também recomendou maior
cautela. O editor de Notícias, porém, foi peremptório no gerúndio:
— Estamos atribuindo.
O jornal se considerava escudado ao atribuir
a informação ao Hamas,
a organização terrorista que governa o enclave. Ao final, segundo apurou a
revista Vanity Fair, a voz mais arrazoada partiu do editor de Internacional:
— Não podemos nos atrelar à atribuição de
algo tão grande a uma só fonte e simplesmente publicar a notícia no alto da
página sem tentar checar sua veracidade. Atribuir a informação no final do
parágrafo não nos servirá de defesa, sairemos chamuscados se estivermos
errados.
A manchete apressada só foi removida do site
horas depois.
Tarde demais.
Quase uma semana depois do ocorrido, o
conceituado matutino publicou um esclarecimento assinado pelo editor executivo
Joseph Kahn:
— Dada a natureza sensível do noticiário
(...), os editores do Times deveriam ter tido maior cuidado na apresentação
inicial [dos fatos] e ter sido mais explícitos quanto ao que, efetivamente, foi
verificado.
A BBC, que em conjunto com
boa parte da imprensa mundial ventilara a versão difundida pelo Hamas, também
veio a público:
— Mesmo na velocidade acelerada da situação
em curso, foi um erro especular sobre as possíveis causas [do ataque], e nos
desculpamos por isso.
O Wall Street Journal, as redes
noticiosas Al Jazeera e CNN, as veteranas agências
Associated Press e Reuters fizeram cara de paisagem.
Como se sabe, a versão inicial para a causa
da explosão no hospital Al-Ahli Arab abarrotado de pacientes e civis em busca
de guarida está a cada dia mais desacreditada. Não pela inconsistente “peça de
evidência” apresentada pelo governo de Benjamin
Netanyahu e oficialmente encampada por Joe Biden,
mas pela própria negativa do Hamas em apresentar ao mundo uma partícula sequer
do projétil que diz ter transformado o hospital em cemitério. Por ora, os
próprios serviços de inteligência dos Estados Unidos trabalham com afinco a
hipótese de a explosão ter derivado da ruptura de um foguete palestino
desgovernado, lançado a partir de Gaza.
Tarde demais. O mundo árabe e islâmico
inflamou-se, fez voz uníssona diante do martírio abissal, e real, de palestinos
indefesos, e a geopolítica no Oriente Médio se reordenou às pressas diante de
tamanha dor. Evoca-se aqui a responsabilidade individual e coletiva da imprensa
porque a guerra naquelas terras bíblicas ainda está longe de ter esgotado seu
potencial de horror. E, portanto, de manipulação.
O ataque-surpresa de 1.500 terroristas do
Hamas a 20 vilarejos e postos militares israelenses, lançado três semanas
atrás, deixou um rastro de 1.400 civis executados individualmente, a
sangue-frio. Fez também 222 reféns — entre vivos e cadáveres, estrangeiros e
israelenses, de crianças a octogenários —, cujo destino é negociado como
espólio ou trunfo de guerra. A resposta armada do governo humilhado de
Netanyahu desviou-se claramente do “direito à defesa” contra o agressor e há 21
dias sujeita a população civil de Gaza a uma vingança coletiva de desumanidade
máxima. À falta de chão, água, comida, combustível, medicamentos e ar para
respirar, veio juntar-se, na sexta-feira, o bloqueio total de telefonia,
internet e energia no enclave. A noite virou breu, e fez-se um silêncio
pegajoso no enclave, enquanto tanques de Israel abriam caminho para uma
escalada maior.
De um fato o mundo não pode mais escapar: os
palestinos não são um problema, são um povo. Um povo que precisa de um Estado.
Um Estado que não quer ser terrorista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário