domingo, 29 de outubro de 2023

Muniz Sodré* - Barbárie tem fonte, mas não tem identidade

Folha de S. Paulo

O que assombra a consciência global é o estado de desvario em que a dizimação do outro parece destino irrecorrível

Até agora, as sínteses de especialistas sobre o conflito entre Israel e o Hamas acentuam expressões fortes e pessimistas como "abismo de ódio" e "nenhuma porta de saída". Unânime é o reconhecimento enfático da barbárie perpetrada pelo Hamas contra a massa desarmada de mil e quatrocentos israelenses, embora a mesma ênfase arrefeça quanto à morte por bombardeios de mil e novecentas crianças, dentre um total de seis mil palestinos.

Barbárie tem fonte, mas não tem identidade. Nem se avalia por números. O extermínio massivo no Oriente Médio é tão bárbaro quanto o terror semanal na zona oeste ou na Baixada Fluminense, as endêmicas mortes de crianças por balas aleatórias, as execuções de turistas na paisagem carioca. O que assombra a consciência global é o estado de desvario em que a dizimação do outro parece destino irrecorrível. É a condição convulsa da guerra perpétua.

Essa condição foi pressentida por Sigmund Freud numa carta a Chaim Koffler, membro da Fundação para a Reinstalação dos Judeus na Palestina, quando diz não acreditar "que a Palestina possa jamais se tornar um Estado judeu (...) Parece-me mais avisado fundar uma pátria judia sobre um solo historicamente não carregado" (26/2/1930). Ele deplora "que o fanatismo pouco realista dos nossos compatriotas (Volksgenossen) tenha sua parte de responsabilidade no despertar a desconfiança dos árabes".

Judeu, o criador da psicanálise não viveu para ver o Estado de Israel nem as guerras que asseguraram, com apoio norte-americano, o domínio colonial da região. Mas já manifestava regozijo com a prosperidade de "nossos Siedlungen (colonos)". Aqui há um deslize na tradução de "Siedlung", que significa assentamento urbanizado, e não agência de colonização. Os povoamentos a que Freud se refere não tinham nada a ver com as práticas do já findo império colonial alemão.

Mas modernizar implica urbanizar. A modernização do Estado israelense sempre dependeu da urbanização de territórios arrebatados aos palestinos. É a lógica colonial na nova ordem pós-racial (pós-Segunda Guerra) da tomada de terras: constrói-se um Estado de colonizadores brancos à revelia da população nativa.

Método hard, limpeza de terreno pela violência: "Em nossa terra só há lugar para nós. Vamos dizer aos árabes: saiam" (Isaac Rolf, rabino alemão, antes da Segunda Guerra). Método soft, narrativas de exclusividade dos lugares santos lastreadas por uma estatização teocrática. Freud pensava e sentia: pressentia. Daí sua acidez contra "uma piedade mal interpretada, que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional". Quanto à barbárie, diz a perversa Lei de Murphy que "se algo pode dar errado, dará". Só que tem piorado.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

 

 

Nenhum comentário: