Folha de S. Paulo
O que assombra a consciência global é o
estado de desvario em que a dizimação do outro parece destino irrecorrível
Até agora, as sínteses de especialistas sobre o conflito entre Israel e o Hamas acentuam expressões fortes e pessimistas como "abismo de ódio" e "nenhuma porta de saída". Unânime é o reconhecimento enfático da barbárie perpetrada pelo Hamas contra a massa desarmada de mil e quatrocentos israelenses, embora a mesma ênfase arrefeça quanto à morte por bombardeios de mil e novecentas crianças, dentre um total de seis mil palestinos.
Barbárie tem fonte, mas não tem identidade.
Nem se avalia por números. O extermínio massivo no Oriente Médio é tão bárbaro quanto o terror semanal
na zona oeste ou na Baixada Fluminense, as endêmicas mortes de crianças por balas
aleatórias, as execuções de turistas na paisagem carioca. O que assombra a
consciência global é o estado de desvario em que a dizimação do outro parece
destino irrecorrível. É a condição convulsa da guerra perpétua.
Essa condição foi pressentida por Sigmund Freud numa carta a Chaim Koffler, membro da
Fundação para a Reinstalação dos Judeus na Palestina, quando diz não acreditar
"que a Palestina possa jamais se tornar um Estado judeu (...) Parece-me
mais avisado fundar uma pátria judia sobre um solo historicamente não
carregado" (26/2/1930). Ele deplora "que o fanatismo pouco realista
dos nossos compatriotas (Volksgenossen) tenha sua parte de responsabilidade no
despertar a desconfiança dos árabes".
Judeu, o criador da psicanálise não viveu
para ver o Estado de Israel nem as guerras que asseguraram, com apoio
norte-americano, o domínio colonial da região. Mas já manifestava regozijo com
a prosperidade de "nossos Siedlungen (colonos)". Aqui há um deslize
na tradução de "Siedlung", que significa assentamento urbanizado, e
não agência de colonização. Os povoamentos a que Freud se refere não tinham
nada a ver com as práticas do já findo império colonial alemão.
Mas modernizar implica urbanizar. A
modernização do Estado israelense sempre dependeu da urbanização de territórios
arrebatados aos palestinos. É a lógica colonial na nova ordem pós-racial
(pós-Segunda Guerra) da tomada de terras: constrói-se um Estado de
colonizadores brancos à revelia da população nativa.
Método hard, limpeza de terreno pela
violência: "Em nossa terra só há lugar para nós. Vamos dizer aos árabes:
saiam" (Isaac Rolf, rabino alemão, antes da Segunda Guerra). Método soft,
narrativas de exclusividade dos lugares santos lastreadas por uma estatização
teocrática. Freud pensava e sentia: pressentia. Daí sua acidez contra "uma
piedade mal interpretada, que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia
nacional". Quanto à barbárie, diz a perversa Lei de Murphy que "se algo pode dar errado, dará". Só
que tem piorado.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor,
entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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