O Globo
Os dois países e suas eleições não podem ser
comparados quando num deles existe um movimento como o peronismo
Desde que o líder da direita radical argentina Javier Milei surgiu
em cena, nas eleições Legislativas em 2021, as comparações com o
ex-presidente Jair
Bolsonaro foram e são frequentes. O resultado do primeiro
turno, em 22 de outubro passado, levou a algumas análises precipitadas — eu
mesma as fiz —, que compararam o segundo turno na Argentina no dia 19 de
novembro ao segundo turno das eleições brasileiras de 2018. Mas nem Milei é
Bolsonaro, nem a Argentina é o Brasil.
Passados os primeiros dias de um primeiro turno surpreendente — em que o peronismo, movimento político único na América Latina, mostrou sua capacidade de ser uma fênix —, vai ficando claro que os cenários e os candidatos não são iguais. Diferentemente de Bolsonaro, o candidato do jovem partido A Liberdade Avança, fundado por ele em 2021, quando foi eleito deputado e passou a liderar uma bancada de três cadeiras na Câmara, não tem nenhum respaldo institucional sólido. Sua companheira de chapa, Victoria Villarruel, tem vínculos com setores militares, mas não se pode dizer que Milei, economista, conta com o apoio do mundo militar. Na Argentina, que julgou, condenou e continua investigando e condenando os crimes de uma ditadura sanguinária (1976-1983), as Forças Armadas estão fora da política.
O partido de Milei não tem governadores nem
prefeitos, o empresariado desconfia do candidato, assim como o mercado. Não
existe um Paulo Guedes argentino para tentar compensar as incertezas que
despertam algumas propostas de Milei, sem mencionar seu estilo intempestivo e
politicamente incorreto. A equipe que o acompanha é jovem e sem experiência, e
os poucos veteranos que foram incorporados, entre eles Guillermo Francos, que
já atuou em governos peronistas — e era até pouco tempo atrás representante da
Argentina no Banco Interamericano de Desenvolvimento —, não conseguem conter a
tropa despreparada para o mundo fora das redes sociais.
O ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019)
entrou em campo para buscar, justamente, dar a Milei uma estrutura política que
o contenha, mas a operação, até agora, foi desastrosa. A jogada de Macri rompeu
na prática a aliança opositora Juntos pela Mudança, despertando a ira de um
setor expressivo de seus sócios políticos, que se negaram a pedir votos para
Milei. O candidato da direita radical corre o risco, ainda, de perder votos de
sua base mais radical, com que construiu uma conexão emocional fortíssima graças
a uma de suas principais bandeiras: o combate à casta política e a seus
privilégios.
Contudo Milei tem uma vantagem em relação a
Bolsonaro em 2018: enfrenta o ministro da Economia que carrega nas costas uma
taxa de inflação anual
em torno de 140%, que poderá ser ainda mais alta quando o ano terminar. Nos
últimos quatro meses, a Argentina registrou inflação mensal de dois dígitos e,
segundo economistas, pode estar caminhando para a terceira hiperinflação dos
últimos 50 anos. Na primeira fase da campanha, o candidato dos “libertários”
conseguiu captar muitos votos com sua proposta de dolarização, mas na reta
final o medo de dar um salto no escuro superou, em muitos casos, o medo de
aprofundamento da crise.
A campanha agressiva do peronismo, usando o
Estado e a máquina do movimento que domina a política argentina — sendo governo
ou oposição — desde a década de 1940, permitiu que Massa desse a volta por cima
garantindo a preservação de programas sociais, num país onde 40% da população
vive abaixo da linha da pobreza e, segundo dados da Universidade Católica
Argentina, em 2022 cerca de 51,7% dos argentinos recebiam algum tipo de ajuda
do Estado.
Quando a taxa de pobreza bateu em 52%, no
início do governo do também peronista Néstor Kirchner, em 2003, o kirchnerismo
recorreu à emissão monetária para financiar programas estatais que foram
ficando cada vez mais abrangentes, sem os quais hoje economistas estimam que a
taxa de pobreza superaria os 60%.
Os dois países e suas eleições não podem ser
comparados quando num deles existe um movimento como o peronismo, que consegue
proezas como o retorno de Cristina Kirchner ao poder, em 2019 (como
vice-presidente), em meio a diversas denúncias de corrupção, e o bom desempenho
eleitoral de Massa, com a hiperinflação rondando o país.
Milei, como Bolsonaro, captou um voto de
revolta contra a classe política e, no caso da Argentina, décadas de crises
sucessivas. Mas a trajetória, base de apoio e adversários dos dois apresentam
diferenças. Talvez a maior seja que o candidato da direita radical argentina
enfrenta um movimento que não é ideológico.
Vale lembrar uma frase do general Juan
Domingo Perón, de 1972, quando vivia no exílio na Espanha e preparava seu
retorno ao país. Questionado por um jornalista espanhol sobre o cenário que
encontraria em sua terra natal, Perón afirmou:
— Veja, na Argentina temos 30% de radicais
[militantes da União Cívica Radical], o que vocês consideram liberais; 30% de
conservadores e outro tanto de socialistas.
— Onde estão os peronistas? — perguntou o
jornalista.
— Ah, não, peronistas somos todos!
*Janaína Figueiredo é repórter especial do
GLOBO e autora de “¿Qué pasa, Argentina? — História, política, manias e paixões
dos nossos hermanos”
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