domingo, 29 de outubro de 2023

Janaína Figueiredo* - Milei não é Bolsonaro, e Argentina não é Brasil

O Globo

Os dois países e suas eleições não podem ser comparados quando num deles existe um movimento como o peronismo

Desde que o líder da direita radical argentina Javier Milei surgiu em cena, nas eleições Legislativas em 2021, as comparações com o ex-presidente Jair Bolsonaro foram e são frequentes. O resultado do primeiro turno, em 22 de outubro passado, levou a algumas análises precipitadas — eu mesma as fiz —, que compararam o segundo turno na Argentina no dia 19 de novembro ao segundo turno das eleições brasileiras de 2018. Mas nem Milei é Bolsonaro, nem a Argentina é o Brasil.

Passados os primeiros dias de um primeiro turno surpreendente — em que o peronismo, movimento político único na América Latina, mostrou sua capacidade de ser uma fênix —, vai ficando claro que os cenários e os candidatos não são iguais. Diferentemente de Bolsonaro, o candidato do jovem partido A Liberdade Avança, fundado por ele em 2021, quando foi eleito deputado e passou a liderar uma bancada de três cadeiras na Câmara, não tem nenhum respaldo institucional sólido. Sua companheira de chapa, Victoria Villarruel, tem vínculos com setores militares, mas não se pode dizer que Milei, economista, conta com o apoio do mundo militar. Na Argentina, que julgou, condenou e continua investigando e condenando os crimes de uma ditadura sanguinária (1976-1983), as Forças Armadas estão fora da política.

O partido de Milei não tem governadores nem prefeitos, o empresariado desconfia do candidato, assim como o mercado. Não existe um Paulo Guedes argentino para tentar compensar as incertezas que despertam algumas propostas de Milei, sem mencionar seu estilo intempestivo e politicamente incorreto. A equipe que o acompanha é jovem e sem experiência, e os poucos veteranos que foram incorporados, entre eles Guillermo Francos, que já atuou em governos peronistas — e era até pouco tempo atrás representante da Argentina no Banco Interamericano de Desenvolvimento —, não conseguem conter a tropa despreparada para o mundo fora das redes sociais.

O ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) entrou em campo para buscar, justamente, dar a Milei uma estrutura política que o contenha, mas a operação, até agora, foi desastrosa. A jogada de Macri rompeu na prática a aliança opositora Juntos pela Mudança, despertando a ira de um setor expressivo de seus sócios políticos, que se negaram a pedir votos para Milei. O candidato da direita radical corre o risco, ainda, de perder votos de sua base mais radical, com que construiu uma conexão emocional fortíssima graças a uma de suas principais bandeiras: o combate à casta política e a seus privilégios.

Contudo Milei tem uma vantagem em relação a Bolsonaro em 2018: enfrenta o ministro da Economia que carrega nas costas uma taxa de inflação anual em torno de 140%, que poderá ser ainda mais alta quando o ano terminar. Nos últimos quatro meses, a Argentina registrou inflação mensal de dois dígitos e, segundo economistas, pode estar caminhando para a terceira hiperinflação dos últimos 50 anos. Na primeira fase da campanha, o candidato dos “libertários” conseguiu captar muitos votos com sua proposta de dolarização, mas na reta final o medo de dar um salto no escuro superou, em muitos casos, o medo de aprofundamento da crise.

A campanha agressiva do peronismo, usando o Estado e a máquina do movimento que domina a política argentina — sendo governo ou oposição — desde a década de 1940, permitiu que Massa desse a volta por cima garantindo a preservação de programas sociais, num país onde 40% da população vive abaixo da linha da pobreza e, segundo dados da Universidade Católica Argentina, em 2022 cerca de 51,7% dos argentinos recebiam algum tipo de ajuda do Estado.

Quando a taxa de pobreza bateu em 52%, no início do governo do também peronista Néstor Kirchner, em 2003, o kirchnerismo recorreu à emissão monetária para financiar programas estatais que foram ficando cada vez mais abrangentes, sem os quais hoje economistas estimam que a taxa de pobreza superaria os 60%.

Os dois países e suas eleições não podem ser comparados quando num deles existe um movimento como o peronismo, que consegue proezas como o retorno de Cristina Kirchner ao poder, em 2019 (como vice-presidente), em meio a diversas denúncias de corrupção, e o bom desempenho eleitoral de Massa, com a hiperinflação rondando o país.

Milei, como Bolsonaro, captou um voto de revolta contra a classe política e, no caso da Argentina, décadas de crises sucessivas. Mas a trajetória, base de apoio e adversários dos dois apresentam diferenças. Talvez a maior seja que o candidato da direita radical argentina enfrenta um movimento que não é ideológico.

Vale lembrar uma frase do general Juan Domingo Perón, de 1972, quando vivia no exílio na Espanha e preparava seu retorno ao país. Questionado por um jornalista espanhol sobre o cenário que encontraria em sua terra natal, Perón afirmou:

— Veja, na Argentina temos 30% de radicais [militantes da União Cívica Radical], o que vocês consideram liberais; 30% de conservadores e outro tanto de socialistas.

— Onde estão os peronistas? — perguntou o jornalista.

— Ah, não, peronistas somos todos!

*Janaína Figueiredo é repórter especial do GLOBO e autora de “¿Qué pasa, Argentina? — História, política, manias e paixões dos nossos hermanos”

 

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