segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Miguel de Almeida - poder feminino

O Globo

Gleisi cumpre hoje o papel antes ocupado por Dilma Rousseff

Quiseram os astros (a Lua em gêmeos, presumo), e uma conjunção cósmica alinhou os três partidos maiores de esquerda do Brasil sob o comando de mulheres. Gleisi Hoffmann à frente do PT; Luciana Santos, no PCdoB; e Paula Coradi, eleita há pouco no PSOL. Nunca antes no Brasil ocorrera semelhante sintonia de gênero no meio progressista. Pode ser um sinal dos tempos, como pode não ser absolutamente nada. Talvez uma brincadeira astral. Ou não.

Por alguma injunção planetária, os três partidos apoiam o governo do presidente Lula. Portanto, sócios na alegria e na crise de segurança; na herança econômica de Paulo Guedes e na esperada exploração de petróleo na Margem Equatorial (como já ocorreu com a escravidão, seremos o último país do mundo a abandonar tal atraso); na pauta identitária (sempre me lembro do cãozinho militante subindo a rampa na posse; fofo) e no churrasco com Arthur Lira.

Entre as três comandantes, há nuances de força política, de mensagens tuitadas e de ministérios ocupados. E de adversários abatidos. Não chegam a ser inimigas íntimas, mas não partilham sempre a mesma cor ou análise conjuntural. Como acontece na esquerda, envolvendo quaisquer dos gêneros militantes, há mais divergências do que concordâncias — roubando aqui um raciocínio ou axioma de Dilma Rousseff, na hora de engarrafar vento, cada qual possui sua receita. Dirigem agremiações de esquerda, no entanto não se acanham muitas vezes em dividir o rodízio com Fufuca, notório pau-mandado de Arthur Lira. É da política engolir sapos.

Das três, Gleisi Hoffmann é quem tem repercussão, dado estar à frente do PT, o maior partido da esquerda brasileira, e ter o apoio explícito de sua maior estrela, Lula. Ex-senadora, ex-ministra e agora deputada federal, a despeito de tamanho currículo, é apontada como ponta-esquerda do presidente. Quase um ventríloquo. Cumpre hoje o papel antes ocupado por Dilma Rousseff: estrilar ou detonar políticas públicas ou políticos, sejam do próprio partido (o PT é um balaio) ou de adversários. Foi assim no início do atual governo, ao peitar Fernando Haddad e exigir a manutenção da isenção dos combustíveis (uma ideia —vá lá! —, bolsonarista); e é agora, ao apertar a garganta de Rodrigo Pacheco em virtude da agenda de votação e de projetos no Senado. Por vezes sua atuação confunde a plateia. Caso de quando atacou a existência da Justiça Eleitoral. Aí se avaliou que havia deixado de servir a um senhor para aderir a outro altar, o São Bozo. Porque Bolsonaro, em seus tantos chiliques ou delírios, jamais chegou a pleitear a descontinuidade de tal poder. Dizer que Gleisi falou sem pensar seria misógino — estava, sim, querendo descontão ou perdão para as multas aplicadas ao seu partido. O Valdemar do PL, da direita fisiológica, gostou da tabelinha.

Ainda no caso da deputada Gleisi, um enigma ocupa a política brasileira. Desde sempre não poupou Haddad. Antes como candidato presidencial, em 2018, agora como ministro da Fazenda. Sendo Haddad cria de Lula, quase um filho mais bem vestido, por que Gleisi sempre está no lado oposto? Certo é que as ideias de Haddad são menos esquemáticas ou mofadas que as de Gleisi, glossário vivo da esquerda pré-queda do Muro de Berlim; uma geiselista estatizante, tal como Lula — ah, talvez esteja aí a resolução do mistério: monumentos ao atraso.

No arco da participação feminina na esquerda, ao menos no período da redemocratização, as eleições de 2014 marcam de fato a indistinção de gênero na política. Pela primeira vez, três mulheres, com histórico na área progressista, se viram na disputa pela Presidência. Como pessimista radical, apostava que a oportunidade de avanço civilizacional mais uma vez seria perdida. Infelizmente acertei. Dilma Rousseff, afinal eleita, com Gleisi ao lado, enfrentou com mentiras as ideias arejadas e sensatas de Marina Silva e se viu açodada à esquerda por Luciana Genro. Deu no que deu.

Quando se fala no poder feminino, apaga-se a trajetória de Dilma Rousseff, cuja assunção se deve a Lula. Dado seu fracasso, é um esquecimento estratégico. Com o Censo trazendo a presença majoritária de mulheres no Brasil, principalmente entre evangélicos, talvez se avizinhem mudanças. Ou não.

É um vício olhar apenas à esquerda. Ano passado, a novidade não foi a volta de Lula. Mas Simone Tebet. Em 2026, poderá ser a senadora Teresa Cristina.

 

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