O Globo
Gleisi cumpre hoje o papel antes ocupado por
Dilma Rousseff
Quiseram os astros (a Lua em gêmeos,
presumo), e uma conjunção cósmica alinhou os três partidos maiores de esquerda
do Brasil sob o comando de mulheres. Gleisi
Hoffmann à frente do PT; Luciana Santos, no PCdoB; e Paula Coradi,
eleita há pouco no PSOL. Nunca antes no Brasil ocorrera semelhante sintonia de
gênero no meio progressista. Pode ser um sinal dos tempos, como pode não ser
absolutamente nada. Talvez uma brincadeira astral. Ou não.
Por alguma injunção planetária, os três partidos apoiam o governo do presidente Lula. Portanto, sócios na alegria e na crise de segurança; na herança econômica de Paulo Guedes e na esperada exploração de petróleo na Margem Equatorial (como já ocorreu com a escravidão, seremos o último país do mundo a abandonar tal atraso); na pauta identitária (sempre me lembro do cãozinho militante subindo a rampa na posse; fofo) e no churrasco com Arthur Lira.
Entre as três comandantes, há nuances de
força política, de mensagens tuitadas e de ministérios ocupados. E de
adversários abatidos. Não chegam a ser inimigas íntimas, mas não partilham
sempre a mesma cor ou análise conjuntural. Como acontece na esquerda,
envolvendo quaisquer dos gêneros militantes, há mais divergências do que
concordâncias — roubando aqui um raciocínio ou axioma de Dilma
Rousseff, na hora de engarrafar vento, cada qual possui sua receita.
Dirigem agremiações de esquerda, no entanto não se acanham muitas vezes em
dividir o rodízio com Fufuca, notório pau-mandado de Arthur Lira. É da política
engolir sapos.
Das três, Gleisi Hoffmann é quem tem
repercussão, dado estar à frente do PT, o maior partido da esquerda brasileira,
e ter o apoio explícito de sua maior estrela, Lula. Ex-senadora, ex-ministra e
agora deputada federal, a despeito de tamanho currículo, é apontada como
ponta-esquerda do presidente. Quase um ventríloquo. Cumpre hoje o papel antes
ocupado por Dilma Rousseff: estrilar ou detonar políticas públicas ou
políticos, sejam do próprio partido (o PT é um balaio) ou de adversários. Foi
assim no início do atual governo, ao peitar Fernando Haddad e exigir a
manutenção da isenção dos combustíveis (uma ideia —vá lá! —, bolsonarista); e é
agora, ao apertar a garganta de Rodrigo
Pacheco em virtude da agenda de votação e de projetos no Senado. Por
vezes sua atuação confunde a plateia. Caso de quando atacou a existência da
Justiça Eleitoral. Aí se avaliou que havia deixado de servir a um senhor para
aderir a outro altar, o São Bozo. Porque Bolsonaro, em seus tantos chiliques ou
delírios, jamais chegou a pleitear a descontinuidade de tal poder. Dizer que
Gleisi falou sem pensar seria misógino — estava, sim, querendo descontão ou
perdão para as multas aplicadas ao seu partido. O Valdemar do PL, da direita
fisiológica, gostou da tabelinha.
Ainda no caso da deputada Gleisi, um enigma
ocupa a política brasileira. Desde sempre não poupou Haddad. Antes como
candidato presidencial, em 2018, agora como ministro da Fazenda. Sendo Haddad
cria de Lula, quase um filho mais bem vestido, por que Gleisi sempre está no
lado oposto? Certo é que as ideias de Haddad são menos esquemáticas ou mofadas
que as de Gleisi, glossário vivo da esquerda pré-queda do Muro de Berlim; uma
geiselista estatizante, tal como Lula — ah, talvez esteja aí a resolução do
mistério: monumentos ao atraso.
No arco da participação feminina na esquerda,
ao menos no período da redemocratização, as eleições de 2014 marcam de fato a
indistinção de gênero na política. Pela primeira vez, três mulheres, com
histórico na área progressista, se viram na disputa pela Presidência. Como
pessimista radical, apostava que a oportunidade de avanço civilizacional mais
uma vez seria perdida. Infelizmente acertei. Dilma Rousseff, afinal eleita, com
Gleisi ao lado, enfrentou com mentiras as ideias arejadas e sensatas de Marina
Silva e se viu açodada à esquerda por Luciana Genro. Deu no que deu.
Quando se fala no poder feminino, apaga-se a
trajetória de Dilma Rousseff, cuja assunção se deve a Lula. Dado seu fracasso,
é um esquecimento estratégico. Com o Censo trazendo a presença majoritária de
mulheres no Brasil, principalmente entre evangélicos, talvez se avizinhem
mudanças. Ou não.
É um vício olhar apenas à esquerda. Ano
passado, a novidade não foi a volta de Lula. Mas Simone Tebet. Em 2026, poderá
ser a senadora Teresa Cristina.
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