Folha de S. Paulo
A armadilha da escolha trágica entre status
quo intolerável e a mudança hiperbólica
Por que Milei escolheu
a estratégia maximalista de apresentar um decreto de necessidade e urgência
(DNU) para revogar 300 dispositivos legais? Seria por que todos os presidentes
argentinos no período democrático fizeram algo semelhante? Sim, aqui a novidade
seria apenas sua amplitude inédita. E nem tanto.
O peronista Carlos Menem implementou, via 545
DNUs, um programa radical que incluía a privatização da YPF, dos Correios, da Aerolíneas Argentinas etc.
Como ampliou de 5 para 9 o número de ministros da Suprema Corte, adquiriu uma
conhecida "maioria automática" contra questionamentos sobre a
necessidade ou urgência dos DNUs.
Há muito ruído na cobertura do DNU. Entre nós, o paralelo com as medidas provisórias é descabido. O DNU foi introduzido pela Constituição argentina de 1994, mas, ao contrário das MPs brasileiras, permaneceu sem regulamentação. Esta só veio em 2006, quando Cristina Kirchner aprovou uma lei neste sentido. No entanto a lei é ainda mais problemática do que o texto vago da Constituição porque praticamente impede o rechaço dos DNUs.
No período 1994 até 2006, não houve nenhum
controle legislativo —não se formou comissões bilaterais— por omissão na
regulamentação. No Brasil, antes da EC 32/2001, as MPs podiam ser reeditadas, mas havia algum
controle; o STF chegou a invalidar lei aprovada apenas em plenário.
A lei aprovada em 2006 estipulava que o DNU
só perderia a validade se fosse derrubado tanto na Câmara como no Senado. No
Brasil, basta que uma das casas legislativas rejeite uma MP para que ela seja
rechaçada. E mais, ao contrário da lei brasileira, que prevê projetos de
conversão de MPs, os DNUs não podem ser emendados. Tem que ser aprovados ou
desaprovados na íntegra, como nossas raríssimas leis delegadas. A grande
assimetria a favor do Executivo levou analistas argentinos, como Carlos Nino, a
denunciar o hiperpresidencialismo; e Guillermo
O’Donnell, o mais famoso deles, a cunhar a expressão democracia
delegativa. Já discuti aqui na coluna o caráter democrático das MPs.
A regulamentação de Cristina garante assim
para Milei uma vantagem estratégica nas relações Executivo-Legislativo. É pegar
ou largar. E basta contar com o apoio de uma das casas legislativas. Mas Milei também apresentou uma "Lei ônibus", com 351 páginas, contemplando
664 artigos. O decreto poderá ter a mesma sorte do pacote reformista de Macri: reenviado na forma de projeto de lei e aprovado, ainda
que parcialmente. Milei não conta, contudo, com a "maioria
automática" de Menem.
A escolha se dará entre o status quo
—rejeitado amplamente nas urnas— e a mudança hiperbólica e voluntarista. Sim,
trata-se de escolha trágica a que chegou a Argentina após décadas de
degeneração institucional.
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Um comentário:
Chore por nós,brasileiros.
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