CartaCapital
Golpistas visam fazer do Estado um ingrediente da culinária de rachadinhas
As investigações
da Polícia Federal denunciaram o golpismo bolsonarista e
receberam increpações de “perseguição” desferidas pelos acólitos do
ex-presidente. Seria deplorável se as instituições do Estado estivessem
mobilizadas para perseguir cidadãos, sejam eles ex-presidentes ou deserdados da
vida, condenados a morar nas ruas.
Nas repúblicas modernas figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública, à constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei. São essas as regras que comandam as investigações da Polícia Federal sob controle da Procuradoria-Geral da República e do Supremo Tribunal Federal
O sistema de poderes e garantias ancorado na
lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no
exercício do poder legitimado pelo voto e pela lei, as tentativas de opressão
arbitrária de um indivíduo sobre o outro. Não há como pensar a sobrevivência da
sociedade dos indivíduos-cidadãos sem imaginar a presença do poder repressivo
do Estado. O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por
solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no
desamparo e na violência sem quartel.
Os códigos da cidadania moderna foram
concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo
anarquista e reacionário dos que se consideram com mais direitos e poderes.
Esses, no Brasil, invariavelmente imaginam uma sociedade sem a presença de um
Estado democrático e forte, capaz de intimidar aqueles que, ricos ou pobres,
pretendem impor-se por meio da intimidação.
A escolha diante da qual Hobbes coloca os
homens não poderia ser mais clara: ou eles desejam desfrutar dos frutos do
exercício pacífico de sua liberdade racional e devem, então, submeter-se às
decisões de um poder reconhecido por todos; ou preferem desfrutar plenamente de
sua liberdade natural e ilimitada, e então devem aceitar viver na insegurança e
na miséria.
No Leviatã, Hobbes é um defensor do regime da
lei. As incursões golpistas do bolsonarismo pretendem usurpar as instituições
republicanas − falíveis, mas insubstituíveis − e levar o Estado para a cozinha
de sua casa, onde preparam a fétida e gosmenta culinária de rachadinhas,
rachadonas e, sobretudo, rachaduras nos pilares que sustentam as instituições
republicanas.
Para avançar na compreensão do fenômeno bolsonarista é
preciso ir além da figura de Bolsonaro e investigar as raízes sociais do
bolsonarismo. Para tanto seria conveniente recorrer a Hannah Arendt. A autora
do livro As Origens do Totalitarismo discorreu de forma impecável a respeito da
sociedade de massa e o nazismo. Arendt abordou as transformações sociais e
políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massa. A economia dos
monopólios substituiu a empresa individual pela coletivização da propriedade
privada, ao mesmo tempo que promovia a “individualização do trabalho”,
engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande
empresa. A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o
declínio do homem público e a ascensão do homem massa, cuja principal
característica não é (somente) a brutalidade e a rudeza, mas o seu isolamento e
sua falta de relações sociais normais.
Trata-se da abolição do sentimento de
pertinência, da desconstrução dos laços familiares, afetivos e de
companheirismo. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja
estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas
quando se pertencia a uma classe.” A escória, na visão de Arendt, não tem a
ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os
indivíduos altamente cultos se sentem particularmente atraídos pelos movimentos
da ralé”. O massacre capitalista das tradições liberais fomentou os desatinos
que hoje contaminam o mundo da informação.
A digressão de Hannah Arendt exibe as propriedades do bolsonarismo. Em sua incapacidade de argumentar ou contra-argumentar, a ralé bolsonarista recolhe a sua insignificância na adoração do Mito. A gritaria da ralé: Mito, Mito, expelida das gargantas ressentidas e autoritárias, funciona como ameaça à liberdade dos demais, os divergentes. Também cumprem essa maldição as designações dos adversários políticos como comunistas, acusação que encarna e reproduz o caráter nazifascista das massas mobilizadas por Bolsonaro e sua clique.
*Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.
Um comentário:
Deve ser ''claque'' e não ''clique''.
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