quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Congresso controla mais recursos do que seria razoável

O Globo

Em vez de enfrentar Executivo para ampliá-los, Lira deveria concentrar esforço no êxito da agenda econômica

Sob qualquer ângulo, a fatia do Orçamento da União controlada pelo Congresso é enorme. Deputados e senadores decidirão o destino de R$ 44,6 bilhões neste ano, ou 20% dos gastos livres do governo (90% das despesas são engessadas por gastos obrigatórios com salários do funcionalismo, benefícios previdenciários e demais vinculações orçamentárias). Há dez anos, a fatia dos recursos livres nas mãos dos congressistas era pouco menos de um quarto disso, ou 4,65%.

Como mostrou reportagem do GLOBO, essa parcela destoa na comparação internacional. Numa análise de 29 países, os outros três onde o Parlamento detém maior poder sobre os recursos são Estados Unidos (2,4%), Eslováquia (5,5%) e Estônia (12,3%). No Brasil, o Congresso arbitra sobre uma proporção equivalente a oito vezes a que cabe aos congressistas americanos. Só isso deveria ensejar reflexão.

Tal reflexão se torna mais necessária diante da declaração do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), na cerimônia de abertura do ano legislativo. Ao afirmar que a peça orçamentária “pertence a todos e todas, e não apenas ao Executivo”, Lira apenas constata a realidade expressa nos números. Esquece, contudo, que não se trata necessariamente de realidade positiva.

Com uma parcela maior do Orçamento sob comando dos parlamentares na última década, o governo brasileiro ganhou contornos não só de extravagância, mas de disfuncionalidade. No presidencialismo, cabe ao Legislativo elaborar a peça orçamentária, mas sua execução é, por definição e determinação constitucional, papel do Executivo. E por bons motivos. Políticas públicas são mais eficazes quando formuladas de modo abrangente, levando em conta urgências e demandas nacionais ou regionais — o oposto da lógica paroquial das emendas parlamentares. Evitar a pulverização tem a vantagem de aumentar a transparência e reduzir brechas para desvios e corrupção.

Tanto a ciência política como a comparação internacional demonstram que emendas parlamentares não são o instrumento adequado para melhorar os serviços prestados à população. Parlamentares brasileiros alegam conhecer as demandas do eleitorado. Mas não há evidência de que anabolizar o poder do Congresso sobre o Orçamento tenha obtido bons resultados. Não há notícia de país que tenha seguido os passos do Brasil nesse quesito.

Por tudo isso, seria mais lógico o Parlamento brasileiro cair em si e entender seu papel na dinâmica orçamentária. Fez bem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao vetar R$ 5,6 bilhões que seriam destinados a emendas de comissão. Em vez de tentar enfrentar o Executivo ou derrubar o veto para que congressistas controlem fatia ainda maior dos recursos, Lira deveria dar ênfase ao papel essencial que tem desempenhado para o êxito da agenda econômica, em parceria produtiva com o Executivo. Ele foi um dos protagonistas da reforma tributária e de outros avanços legislativos. Além de contribuir para o sucesso da economia, também aumentou seu capital político.

Mas essa é uma obra inacabada. Lira tem mais um ano no cargo e precisa dedicá-lo com afinco ao que falta: regulamentação da reforma tributária, reforma administrativa e medidas essenciais ao futuro do Brasil. Seria um erro político usar seu cacife para arrancar mais concessões num Orçamento cujos recursos os congressistas já controlam mais que em qualquer outro país.

Acordo para produzir no Brasil vacina japonesa reforçaria combate à dengue

O Globo

A exemplo do que ocorreu na pandemia, fabricação nacional pode aliviar escassez em momento crítico

Mesmo antes do período de maior incidência da dengue, entre março e maio, o Brasil já enfrenta explosão nos casos. De acordo com o Ministério da Saúde, nas primeiras quatro semanas do ano os infectados mais que triplicaram em relação ao mesmo período do ano passado, passando de 215 mil. Os estados de Minas Gerais, Goiás e Acre, além do Distrito Federal e da cidade do Rio de Janeiro, decretaram situação de emergência.

O Ministério da Saúde começa neste mês a aplicar a vacina Qdenga, da farmacêutica japonesa Takeda, mas a capacidade de produção do laboratório é limitada. Para todo o ano, está prevista a entrega de 6,5 milhões de doses. Como cada vacinado precisa de duas, em torno de 3,2 milhões de pessoas poderão ser imunizadas.

Para contornar a escassez, o governo decidiu que a vacina será destinada prioritariamente a adolescentes de 10 a 14 anos, apenas em regiões onde há maior incidência da doença. Dos 5.570 municípios brasileiros, pouco mais de 500 receberão as doses. Com o intuito de aumentar a oferta para o SUS, a Takeda anunciou que não venderá mais a vacina a clínicas particulares ou municípios.

O Instituto Butantan, em parceria com o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, desenvolve uma vacina contra a dengue que se mostra promissora, mas não está pronta. De acordo com estudo publicado na semana passada na revista científica New England Journal of Medicine, ela apresenta eficácia de 79,6% na prevenção da doença (semelhante à da Qdenga, de 80,2%). Como a vacina japonesa, protege contra os quatro tipos de dengue, com uma vantagem: é aplicada em dose única. Mas só estará disponível para aplicação no ano que vem.

Diante do quadro que se agrava a cada dia e da impossibilidade de promover uma vacinação maciça, é importante que o governo federal firme acordo com o fabricante para produzir também a Qdenga no Brasil, a exemplo do que foi feito durante a pandemia. Na época, o Butantan produziu a CoronaVac e a Fiocruz a AstraZeneca. Ambas foram fundamentais no controle da epidemia. A própria ministra da Saúde, Nísia Trindade, aventou essa possibilidade e prometeu trabalhar para colocá-la em prática.

O combate ao mosquito transmissor não pode ser esquecido e precisa ser reforçado. Segundo o Ministério da Saúde, 75% dos focos estão dentro de residências. Mas o Brasil necessita de soluções urgentes. O aumento nas internações já pressiona as redes de saúde, e os mortos confirmados já chegaram a 15 (149 estão sob investigação). A vacina é uma aliada importante na prevenção de casos graves e mortes. A quantidade oferecida pela Takeda não atende às necessidades. Os resultados da vacina do Butantan são auspiciosos, mas ela ainda não pode ser usada. Por isso uma alternativa é produzir a Qdenga no Brasil. A pandemia de Covid-19 mostrou que é um caminho viável.

Evolução de salários e emprego preocupa BC

Valor Econômico

Mercado de trabalho apertado e salários com correção acima da inflação podem retardar convergência do IPCA para a meta

O Banco Central (BC) está preocupado com a dinâmica dos salários e com o aquecimento do mercado de trabalho. Não é uma preocupação nova, mas subiu um pouco de grau na avaliação das condições que determinam a trajetória prospectiva da inflação. Ainda que o Comitê de Política Monetária (Copom), na ata divulgada ontem, indique que a “dinâmica inflacionária não divergiu significativamente do que era esperado”, ele reconheceu que há nela elementos que “requerem maior escrutínio”. O hiato do produto, distância (positiva ou negativa) que separa o crescimento do seu ritmo potencial, e o balanço entre oferta e demanda de mão de obra foram novamente apontados como objeto de atenção. O BC ratificou a indicação de que manterá o ritmo de corte da taxa de juros de 0,5 ponto percentual nas próximas reuniões.

Em suas primeiras declarações após a reunião do Copom, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, disse ontem que o comportamento da economia no primeiro trimestre do ano “vai surpreender para cima” e que dados de alta frequência indicam que o setor de serviços “puxa bastante o crescimento”. Isso aparentemente contradiz a ata, mas Campos Neto ressaltou que a taxa de participação, proporção das pessoas em idade de trabalhar que estão empregadas ou procuram emprego, subiu recentemente, “algo que não acontecia há bastante tempo”. Na ata, o Copom apontou, além da “resiliência” no consumo das famílias, o fato de o mercado de trabalho se manter aquecido, com avanço nos rendimentos reais.

A atitude de cautela do BC decorre do balanço dos riscos externos e domésticos, altamente associados. A ata registra que a desinflação do setor de serviços, que hoje é um elemento de resistência a uma queda acelerada de preços, depende do comportamento do mercado de trabalho e da velocidade do crescimento, que definirão a “natureza das pressões inflacionárias e potencialmente o ritmo de distensão monetária” nos países avançados. Há algo semelhante ocorrendo no cenário interno. A desaceleração da atividade tornou-se mais lenta, devido à elevação da renda das famílias em consequência do aumento real do salário mínimo, do emprego e dos benefícios sociais.

Entretanto, há forças que jogam contra pressões inflacionárias lá fora e aqui. No primeiro caso, a deflação dos preços ao produtor na China e sua moderação nos Estados Unidos ajudam a frear os preços dos serviços. A desaceleração do crescimento global, que amortece as cotações das commodities, influi na mesma direção. O problema se concentra no setor de serviços, que responde mais ao aumento de salários e do emprego. Nos Estados Unidos, os últimos dados de criação de vagas ultrapassaram as expectativas, assim como a evolução anual do reajuste de salários.

No Brasil, em menor grau, o Copom anotou crescimento maior dos rendimentos reais recentemente, com a avaliação de que esses ganhos podem “refletir questões temporárias”. Assim como há uma defasagem temporal entre o aumento de juros e seus efeitos sobre a atividade econômica, algo semelhante pode ocorrer com os salários diante de uma queda significativa da inflação, como vem ocorrendo. Olhando para trás, os rendimentos do trabalho perderam poder de compra com o avanço dos preços. Olhando para frente, os reajustes com base na maior inflação passada correm à frente da menor inflação presente, o que na presença de uma forte inércia poderia impedir o IPCA de recuar. Mas isso não é um fator de grande preocupação no presente, porque quanto menor a inflação corrente menor a inércia inflacionária. O BC, em seu cenário de referência, projeta um IPCA de 3,5% este ano e de 3,2% no ano que vem.

Mesmo com a queda sucessiva da taxa Selic, a taxa atual de 11,25% ainda é bastante contracionista, com juro real de 6%. Ainda assim, o BC detectou “sinais de maior concessão de crédito em algumas linhas e redução das taxas de juros correntes de novas concessões, auxiliados também por incipiente aumento do apetite na oferta de crédito em certas linhas por parte das instituições financeiras”. Há também maior atividade no mercado de capitais. Ou seja, sem que a economia tenha esfriado bastante, já se notam indícios de que a desaceleração pode não ser tão intensa e, com isso, a economia crescer acima do 1,6% previsto no boletim Focus.

Nessas circunstâncias, segundo o Copom, “um mercado de trabalho mais apertado, com reajustes salariais acima da meta de inflação, pode potencialmente retardar a convergência da inflação, impactando notadamente a inflação de serviços e de setores mais intensivos em mão de obra”. Mas o arrefecimento dos preços das commodities e eventual menor inflação de serviços poderiam fazer a inflação cair mais rapidamente. Com as expectativas ainda desancoradas (3,8%, mas com viés de baixa), a política monetária seguirá cautelosa, desaconselhando um ritmo mais veloz de queda da Selic, mas também sem interromper os cortes significativos de 0,5 ponto percentual nas próximas reuniões.

Governo não pode ser hospital de empresas

Folha de S. Paulo

Tesouro não tem recursos para socorro financeiro, que pode gerar distorções

Está aberta a temporada de pedidos de socorro ao governo federal por parte de setores empresariais diversos. Os demandantes se queixam de dificuldades causadas por fatores em tese externos a sua atividade, de oscilações de custos e receitas ou, em escala menor, de problemas regulatórios.

A agropecuária reclama de perdas de safras devido a eventos climáticos, da baixa do preço de grãos, do custo de produção e, pois, da dificuldade de honrar o pagamento de dívidas, com os bancos estatais em especial.

Reivindica-se a renegociação desses compromissos e instrumentos de garantia de preços mínimos e compra de estoques pelo governo federal, além de mais subsídio para seguros. O Ministério da Agricultura afirma que, até março, haverá um pacote para o setor, que dispõe de uma bancada poderosa instalada no Congresso.

Também na fila, as companhias aéreas apontam custos altos, em particular dos combustíveis, crédito caro e até excesso de judicialização devido a demandas de passageiros —que, no entanto, pesam apenas 1% em suas despesas.

O pedido de recuperação judicial da Gol nos Estados Unidos impulsionou o pleito pela baixa do preço do querosene —até com questionamento de um monopólio da Petrobras— e por financiamento barato do BNDES, o banco oficial de fomento. Especula-se sobre socorro direto do Tesouro Nacional.

O Ministério de Portos e Aeroportos prevê que, até o fim de fevereiro, haverá um plano de ajuda. Fala-se em um fundo de até R$ 6 bilhões para crédito, entre outros benefícios também reivindicados por pilotos, comissários de bordo e outros trabalhadores do setor.

Já a pasta da Fazenda afirma que não haverá recursos do Tesouro e que estuda um programa de "reestruturação", de formatação ainda obscura. O BNDES pode ofertar crédito, mas quer garantias, que dependem de mudança legal.

A velha ideia do governo como hospital de empresas está de volta, como se vê. Trata-se, como sempre, de um risco para o erário e para a economia como um todo.

Em casos extremos, como foi a pandemia de Covid-19, pode-se considerar um auxílio estritamente temporário e sujeito a avaliação de custos e vantagens para a sociedade. No mais, contudo, o pleito é ou iníquo ou inviável.

Não é possível bancar todos os socorros ou, ainda que a ajuda pudesse ser extensa, a providência seria deletéria para o funcionamento do mercado, com efeitos daninhos para a eficiência. Empresas não raro se tornam dependentes do Estado e mobilizam lobbies pela perpetuação do privilégio.

Querelas brasilienses

Folha de S. Paulo

Lula e Lira medem forças, mas não é a moralização do Orçamento que está em jogo

Nas heterogêneas e instáveis coalizões que caracterizam o presidencialismo brasileiro, Planalto, Congresso e partidos vivem em disputa quase diária por espaços de poder, cargos e verbas. Em tal cenário, nem sempre se consegue distinguir com clareza a pressão cotidiana de uma turbulência mais grave.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tensionou as relações com os parlamentares ao editar, no apagar das luzes do ano passado, uma medida provisória para reonerar gradualmente a folha de pagamento de setores empresariais diversos —o Congresso já derrubara o veto presidencial a um projeto que prorrogava a desoneração.

Há poucos dias, Lula testou novamente os limites de sua força ao vetar R$ 5,6 bilhões em emendas de deputados e senadores ao Orçamento deste 2024. Também nesse caso, a medida corre grande risco de ser revertida pelo Parlamento.

Foi nesse contexto que declarações do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), soaram como reação ao governo. "A política, como sabemos, apoia-se num pilar essencial: o respeito aos acordos firmados e o cumprimento à palavra empenhada", discursou o deputado, na abertura do ano legislativo.

"O Orçamento da União pertence a todos e todas, não apenas ao Executivo" —foi mais uma obviedade que passaria despercebida em outras circunstâncias.

Lira chegou ao posto ainda sob Jair Bolsonaro (PL), num período de fortalecimento do Congresso ante o Planalto. Liderou um avanço irresponsável e sem precedentes dos parlamentes sobre verbas públicas, não interrompido pela troca de guarda em Brasília.

Não são propósitos moralizadores que estão em jogo, porém —e nada indica que convenha a Lula um aprofundamento das querelas. Desde o início de seu terceiro mandato, o petista dá mostras de compreender as novas condições de negociação política. Ter acomodado um nome do PP de Lira no ministério é apenas um dos exemplos.

A correlação de forças, no entanto, é reexaminada a todo momento. A sucessão no comando da Câmara, que ocorrerá dentro de um ano, decerto motivará mais pressões e barganhas de lado a lado.

O ânimo de Toffoli

O Estado de S. Paulo

A esta altura, está claro que tudo o que se interpuser entre o ministro do Supremo e sua autoatribuída missão de reescrever a história da Lava Jato será impiedosamente atropelado

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli mandou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) insista numa investigação sobre um suposto conluio entre a ONG Transparência Internacional e a Lava Jato para se apropriar de recursos recuperados de esquemas de corrupção. A ordem de Dias Toffoli se deu poucos dias depois que a ONG incluiu algumas decisões recentes do ministro – sobretudo as que favoreceram empresas envolvidas em escândalos na era petista – na lista dos fatores que ajudaram a piorar a posição do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção. Não se conhecem os motivos do ministro Toffoli, que de resto parece profundamente empenhado em reescrever a história de corrupção e desmandos que marcaram a trevosa passagem do PT pelo poder. Fica claro, no entanto, que o ministro não se sente constrangido de nenhuma maneira, nem pelas normas mais comezinhas do Estado Democrático de Direito, em seu empreendimento revisionista – que, como todo bom revisionismo, vem carregado de ânimo vingativo.

Ressalte-se que a acusação contra a Transparência Internacional é antiga e que, em 2020, já havia sido peremptoriamente rejeitada pela PGR por absoluta falta de provas. Anteontem, o ministro ordenou que a PGR retome a investigação da atuação da ONG no Brasil, malgrado nesse ínterim não ter vindo nem a público nem aos autos qualquer novo elemento probatório que consubstanciasse a retomada das investigações. Diante disso, não se pode condenar quem veja na ordem exarada pelo ministro Dias Toffoli à PGR uma espécie de retaliação, o que não se coaduna com a judicatura.

O Índice de Percepção da Corrupção deve ser recebido com muita parcimônia, haja vista que a Transparência Internacional se propõe a capturar as percepções de empresários, acadêmicos e outros especialistas no tema, e não dados objetivos e mensuráveis. Mas aqui não está em questão o conteúdo do relatório, e sim a reação truculenta de um ministro do Supremo a algo que leu e não gostou. Resta esperar que o colegiado da Corte ponha termo a esse empreendimento, mas nada sugere que os pares do ministro Dias Toffoli o farão, pois tudo indica que estamos diante de um fato consumado. A decisão de apagar a Lava Jato da historiografia do País parece que já foi tomada. É muitíssimo improvável que Dias Toffoli esteja tomando as decisões que tem tomado sobre os acordos de leniência firmados no âmbito da Lava Jato desde setembro do ano passado, decisões estas extremamente sensíveis, sem a anuência presumida de uma maioria confortável de seus colegas. É urgente, portanto, que o Supremo se pronuncie o quanto antes sobre esses casos como o tribunal colegiado que é.

Essa cruzada revisionista empreendida por Dias Toffoli, sejam quais forem as suas motivações, é gravíssima por tornar ainda mais espessa a névoa de suspeição que paira sobre a atuação do ministro nos processos que culminaram na suspensão do pagamento de multas bilionárias pactuadas entre as autoridades brasileiras e as empreiteiras apanhadas na Lava Jato corrompendo agentes públicos e enriquecendo à custa do erário. A rigor, é forçoso dizer, o ministro Dias Toffoli nem sequer deveria estar à frente de quaisquer processos envolvendo os interesses do Grupo J&F e da Odebrecht no Supremo. Estivesse o País menos bagunçado moral, ética e institucionalmente, o ministro teria se declarado impedido – ou ao menos sua permanência nesses processos provocaria mais espanto. Dias Toffoli, convém lembrar, foi citado como sendo o “amigo do amigo de meu pai” em manifestação enviada por Marcelo Odebrecht à Polícia Federal, em referência ao presidente Lula da Silva e ao pai do empresário, Emílio Odebrecht. Não bastasse isso, a mulher do ministro, Roberta Rangel, é advogada do Grupo J&F.

O conflito de interesses, como se vê, é clamoroso. Ainda mais escandaloso, porém, é o estado de letargia dos pares do ministro Dias Toffoli no STF, que assistem a esse assalto monocrático a tudo o que há de minimamente ético e republicano no exercício do múnus público em nome de interesses para lá de obscuros.

A quem pertence o orçamento

O Estado de S. Paulo

Ele deveria pertencer a todos os brasileiros. Se não pertence, o Congresso deveria assumir sua parcela de responsabilidade. Não são emendas parlamentares que farão com que isso mude

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez sentir sua ausência nos principais eventos políticos do início deste ano. De forma calculada, o deputado não participou das cerimônias para lembrar os atos do 8 de Janeiro nem da retomada dos trabalhos do Judiciário, em que foram retiradas as grades que cercaram a Esplanada dos Ministérios por mais de dez anos. E agora se sabe por quê. Seu primeiro discurso público, na abertura do ano legislativo, foi preparado para marcar posição e enviar recados ao Executivo.

Lira não está satisfeito com o tratamento que o governo lhe tem reservado – leia-se, com o veto presidencial que reduziu o valor das emendas de comissão em R$ 5,6 bilhões. Acredita ter feito tudo o que fora combinado – ou seja, trabalhado pela aprovação da agenda econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad – e cobra do Executivo que reconheça seu esforço e faça sua parte – leia-se, pague o valor integral das emendas.

Poderia ter sido mais sutil, mas preferiu ser bem direto. Para defender seu ponto de vista, citou a Constituição para cobrar respeito ao papel do Legislativo. Mirou não apenas na chefia do Executivo, mas na própria estrutura da administração pública, a quem cabe cumprir etapas burocráticas e obrigatórias, estabelecidas em lei, até que o pagamento das verbas seja liberado.

“O Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”, afirmou.

“O Orçamento é de todos e para todos os brasileiros e brasileiras: não é e nem pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola de sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”, acrescentou.

Lira, como sempre, confunde conceitos de forma propositada. Tenta convencer o público que aprovar o Orçamento é o mesmo que elaborá-lo e quer tirar do Executivo a função de executar a peça orçamentária. Para isso, defende um calendário para o pagamento das emendas e dá a entender que o governo não quer dividir os recursos que tem à disposição com o Legislativo, que, mais próximo da população, saberia exatamente onde e em que aplicar os recursos.

Mais de 90% das despesas do Orçamento são obrigatórias, ou seja, precisam ser pagas independentemente da vontade ou da existência de recursos em caixa – entre elas os salários dos servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e os benefícios da Previdência Social, como aposentadorias e pensões, bem como o fundo eleitoral.

Sobram menos de 10% em despesas discricionárias, nas quais há alguma ingerência sobre o destino final, e que incluem investimentos e emendas. Sobre este naco, o Legislativo avança ano a ano. Segundo reportagem do jornal O Globo, dos R$ 222 bilhões de livre destinação neste ano, R$ 44,6 bilhões se referem a emendas parlamentares, ou 20,05% do total. A título de comparação, em 2014, antes da criação das emendas impositivas, ao Legislativo cabia indicar 4,65% do valor dos gastos discricionários.

Se Lira estivesse certo, o olhar do Legislativo teria feito com que as desigualdades regionais caíssem vertiginosamente nos últimos anos. Este modelo, no entanto, agravou o que já era ruim e criou os chamados desertos políticos, municípios sem padrinhos em Brasília que não recebem recurso algum.

O Orçamento, de fato, deveria pertencer a todos os brasileiros e brasileiras. Se não pertence, o Congresso também deveria assumir sua parcela de responsabilidade em vez de jogar toda a culpa no Executivo.

Não basta recompor o valor das emendas parlamentares para que esse problema seja solucionado. E, se realmente quer aumentar sua participação na destinação de despesas do Orçamento, o Legislativo também terá que começar a contribuir mais ativamente pela recomposição das receitas e, eventualmente, pela elevação da carga tributária.

Tentações salvadorenhas

O Estado de S. Paulo

A repressão ao crime de Bukele está sendo conduzida sob um falso dilema entre segurança e liberdade

Corroborando os índices de aprovação de 80% a 90% do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, as urnas devem lhe conferir um segundo mandato com a mesma proporção de votos. Seu partido deve conquistar uma maioria esmagadora no Parlamento.

A popularidade de Bukele reflete o desespero dos salvadorenhos. A percepção é de que estavam sequestrados pelo crime organizado e que Bukele os libertou. Quando foi eleito, em 2018, o país era um dos mais violentos do mundo, com uma taxa de homicídios de 51 por 100 mil habitantes. Hoje ela se equipara à dos EUA.

Mas essa trajetória foi construída como uma resposta a um dilema perigosamente falso entre a segurança e as liberdades civis e políticas, como se a única solução para a primeira fosse sacrificar as últimas.

Constituições democráticas preveem estados de “emergência” para calamidades públicas, e dificilmente há calamidade maior que a dizimação da população por criminosos. Em 2016, a ONU calculou que os custos da violência no país consumiam 16% do PIB. Em 2022, Bukele declarou um “estado de exceção” que permitiu à polícia promover encarceramentos em massa com base em “evidências” como tatuagens e denúncias anônimas. Hoje o país tem a maior taxa de encarceramento do mundo.

Até então o suposto dilema entre Estado de Direito e segurança não havia sido testado no país, porque não havia nem o primeiro nem a segunda. O Estado paralelo do crime tornava letra morta os direitos dos salvadorenhos.

Após a terapia de choque, um líder republicano aproveitaria a pacificação e sua popularidade para construir as condições para que um Estado de Direito que só existia de jure passasse a existir de facto. Isso começaria por garantir um julgamento justo aos encarcerados. Mas nada indica que Bukele buscará isso. O “estado de exceção”, que deveria durar 30 dias, já foi reeditado 22 vezes. Inocentes padecem das condições duríssimas das prisões, à mercê do recrutamento das facções.

Além disso, o combate ao crime serviu de pretexto para eliminar freios e contrapesos. Bukele tem distribuído generosos benefícios às forças de segurança para garantir sua lealdade, intimidado opositores com elas, aparelhado o Judiciário e o Ministério Público e manipulado a legislação eleitoral. Sua reeleição, vetada pela Constituição, só foi possível com uma manobra casuística dos juízes instalados por ele na Suprema Corte.

Para os políticos que respeitam o Estado de Direito há uma advertência: é preciso levar a criminalidade a sério, sob o risco de serem atropelados por demagogos autoritários. Os salvadorenhos deveriam despertar para os perigos de sua barganha. Nenhum combate à criminalidade é sustentável sem o fortalecimento do Estado de Direito. Em meados dos anos 2000, El Salvador já havia tentado as políticas de “mano dura” e “superdura”, só para testemunhar o refluxo mais brutal do crime. Com um Estado de Direito meramente formal e uma insegurança real, eles aquiesceram sacrificar temporariamente suas liberdades em nome da segurança. Mas há a possibilidade de que no futuro se vejam permanentemente tolhidos de ambas.

E a dengue avança

Correio Braziliense

Além de algumas ações louváveis, no DF, em Minas Gerais e Rio de Janeiro, com unidades de saúde para atendimento às pessoas, é preciso que a sociedade se una para enfrentar o mosquito, seguindo as dicas das autoridades sanitárias

Quase 365 mil casos prováveis de dengue, 36 mortes pela doença e outras 234 em investigação. O Brasil segue em batalha ferrenha contra o Aedes aegypti, nosso conhecido de longa data — pelo menos desde a década de 1980. Nas últimas semanas, assistimos ao crescimento avassalador dos números envolvendo pessoas doentes, filas nos postos de saúde e uma grande quantidade de pacientes que sequer conseguiram ser atendidos dignamente.

Por outro lado, não podemos deixar de destacar algumas ações louváveis, como o funcionamento de unidades de saúde, a exemplo do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília nos fins de semana para atendimento a pessoas com sintomas de dengue e a abertura de um hospital de campanha da Aeronáutica, em Ceilândia, no Distrito Federal, além de iniciativas a longo prazo, como a vacina desenvolvida por pesquisadores do Instituto Butantan, que há 15 anos estudam o mosquito transmissor da dengue.

Para uma mínima parcela da população brasileira, o problema parece estar sendo resolvido. Segundo a Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas (ABCVac), houve um crescimento significativo na aplicação de doses da vacina Qdenga no setor privado de imunização. Esse crescimento se destaca desde outubro de 2023, quando foi registrado aumento de 106,67% em relação a setembro.

A partir daí, o número só cresceu. Em novembro de 2023, foram 1.955 doses; em dezembro, 2.341 doses; e, em janeiro de 2024, chegou a 4.923 doses, um aumento de 110,75% em relação ao mês anterior. Os dados referem-se a cerca de 280 clínicas particulares do Brasil. No período acumulado de julho de 2023 a janeiro de 2024, foram administradas 13.290 doses da Qdenga.

Infelizmente, as vacinas pagas continuam sendo inacessíveis para a maioria dos brasileiros — uma dose contra a dengue custa entre R$ 400 e R$ 490, e a prescrição é de duas doses. Fica a expectativa pela agilidade na liberação pelo Ministério da Saúde das doses gratuitas de Qdenga para a população, medida que pode ajudar a reduzir futuros quadros de epidemia.

Em seu pronunciamento na noite de ontem, a ministra Nísia Trindade fez um relato sobre a situação dos estados e o panorama da doença, além de destacar ações da pasta para combater o mosquito. Estados e municípios receberão recursos extras no valor de R$ 1,5 bilhão. Convocou uma mobilização nacional, envolvendo governadores e governadoras, prefeitos e prefeitas e também a população.

As dicas são velhas conhecidas: não deixar água parada em vasos de plantas e outros recipientes, cuidar de lotes vagos, manter caixas d'água tampadas, recolher lixo e por aí vai. Isso do lado da sociedade. Do lado dos governos, os apelos também são os mesmos: melhoria do saneamento básico, instalação de estações de tratamento de água e atenção aos vulneráveis. É preciso unir forças. Todos nós somos responsáveispela saúde do próximo

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