Folha de S. Paulo
A dinâmica incumbente - oposição e a
disjunção entre voto presidencial e legislativo sugerem um padrão complexo
Felipe Nunes, um dos mais destacados
cientistas políticos brasileiros acaba de publicar, em co-autoria com o
jornalista Thomas Traumann, "Biografia do Abismo" onde defendem o
argumento de que o eleitorado
brasileiro está calcificado.
Trata-se de um argumento desenvolvido originalmente para o caso americano; como mostrei aqui. O primeiro pilar da calcificação é que 1) à semelhança do ocorrido entre democratas e republicanos nos EUA a distância ideológica entre bolsonaristas e petistas se ampliou muito, aumentando para o eleitor o custo de mudar o voto. O segundo é que 2) internamente esses dois grupos de eleitores, nos dois países, estariam cada vez mais homogêneos em termos demográficos —religião, raça— e programáticos. O eleitor petista seria nordestino e pobre.
O terceiro pilar é que 3) a
disputa política nos EUA e no Brasil girava em torno de questões sócio
econômicas deu lugar a questões identitárias. O quarto pilar, 4) a nova e
inédita paridade entre as duas forças políticas, convertendo as eleições, nos
dois países, em pleitos muito competitivos. Os perdedores quase ganharam as
eleições tendo, portanto, fortes incentivos para cristalizar seus programas e
não os revisar.
Entendo que o fenômeno, no entanto, seja
radicalmente distinto nos dois países. O baixíssimo partidarismo e a alta
fragmentação partidária sugerem outro padrão. Décadas de pesquisas empíricas
mostraram que o eleitorado brasileiro apresenta comparativamente níveis
baixíssimos de identificação partidária. Quase 70% do eleitorado não se
identifica com nenhum partido. Cerca de 80% daqueles com simpatia por um
partido, o fazem em relação ao PT. Isto se reflete
no fato, por exemplo, que Lula obteve
quase 70% dos votos em Pernambuco, mas o PT elegeu apenas dois deputados
federais no estado (8% da bancada de 25, atualmente restrita a 1 parlamentar).
Na região nordeste, a clivagem ideológica é a mesma encontrada fora dela: o
percentual dos parlamentares do centrão no Nordeste e no país como
um todo é similar.
Substituir petismo por lulismo não
resolve a disjunção entre voto presidencial e legislativo. Por outro lado,
identificar um campo antagônico, representado por "antipetismo" seria
utilizar uma linguagem dos protagonistas como categoria analítica. Mais
importante: seria desconsiderar a dinâmica crucial entre incumbente e oposição.
Parece-me que os pilares 1) e 2) não são
consistentes com o argumento geral e refletem um padrão maleável e não
calcificado. Sim, as questões redistributivas ainda mantêm centralidade. Mas
aqui o padrão se inverte: os grotões pobres votam em Trump e os estados de
renda mais elevada em Biden, que é uma imagem invertida do mapa do voto entre
nós.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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