Valor Econômico
Suspensão de desoneração tem fundamento técnico e jurídico, mas esbarra na Política
O noticiário nos últimos anos faz parecer que
todas as divergências entre Executivo, Legislativo e Judiciário são
simplesmente uma briga por poder. Na maioria das vezes, é disso mesmo que se
trata. Mas nem sempre.
A desoneração da folha de pagamentos é um
programa temporário criado em agosto de 2011 pela então presidente Dilma
Rousseff, com duração prevista até dezembro de 2012. Desde então vem sendo
continuamente prorrogado, a despeito de seu alto custo fiscal e de resultados
econômicos duvidosos.
Nesse período, Joaquim Levy (ministro da Fazenda de Dilma 2), Henrique Meirelles (Michel Temer), Paulo Guedes (Bolsonaro) e Fernando Haddad (Lula 3) tentaram acabar com o benefício. Em vão.
Os últimos capítulos dessa novela, porém, têm
sido especialmente tensos. A desoneração estava prevista para se extinguir no
último dia de 2023, mas em 25 de outubro o Congresso prorrogou os benefícios
por mais quatro anos. Como se não bastasse, ainda reduziu a alíquota de
contribuição para a Previdência sobre a folha de pagamentos de boa parte dos
municípios brasileiros de 20% para 8%.
Lula, porém, vetou integralmente a proposta
em 23 de novembro. Como a palavra final na tramitação de projetos de lei cabe
sempre ao Poder Legislativo, em 14 de dezembro o Congresso se reuniu e derrubou
a decisão do presidente da República, numa votação bastante expressiva: 60 a 13
no Senado e 378 a 78 na Câmara dos Deputados. A prorrogação da desoneração de
alguns setores intensivos em mão-de-obra estava garantida, assim como a redução
da contribuição previdenciária das prefeituras.
Mas o governo resolveu não jogar a toalha tão
facilmente. No apagar das luzes de 2023, Lula editou uma medida provisória (MP
nº 1.202) em 28 de dezembro revogando a desoneração da folha para as empresas e
substituindo-a por um alívio tributário bem mais limitado, que teria efeitos a
partir de primeiro de abril de 2024. No caso dos municípios, a redução da
alíquota foi cancelada.
Pegos de surpresa, os parlamentares reagiram
com fúria. Interpretando a ação do governo como uma medida arbitrária contra
uma deliberação que teve amplo apoio de seus integrantes, os líderes do
Congresso ameaçaram derrubar a MP.
Lula e Haddad não quiseram pagar pra ver, e
editaram em 27 de fevereiro de 2024 uma nova medida provisória (a MP nº 1.208),
revogando a revogação da desoneração da folha de pagamentos para as empresas -
embora o cancelamento da redução da contribuição previdenciária dos municípios
tivesse sido mantido.
O recuo do governo não foi suficiente para
aplacar o descontentamento dos deputados e senadores. Quando chegou o momento
de prorrogar o prazo da medida provisória, o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), não estendeu os efeitos dos dispositivos que aumentavam a
alíquota previdenciária das prefeituras.
Na prática, estava reestabelecida a
deliberação do Congresso que tinha derrubado o veto de Lula: a desoneração da
folha das empresas estava mantida até o fim de 2027 e os municípios passariam a
pagar apenas 8% sobre sua folha de pagamentos.
O placar do jogo parecia resolvido, com
vitória dos parlamentares. Mas o governo surpreendeu novamente ao recorrer ao
tapetão.
Na última quarta-feira (24) a Advocacia-Geral
da União ingressou no Supremo Tribunal Federal questionando a
constitucionalidade da decisão do Congresso e pedindo o cancelamento dos
alívios fiscais concedidos às empresas e prefeituras beneficiadas pela desoneração.
A ação (ADI nº 7.633) foi distribuída para o
ministro Cristiano Zanin, que já cuidava de um processo com a mesma temática. O
ministro agiu rápido, e no dia seguinte concedeu uma liminar atendendo
provisoriamente ao requisitado pelo governo.
A liminar de Zanin foi lida como mais um
sinal de intromissão do STF a favor do governo Lula, impondo sua vontade de
modo arbitrário sobre uma decisão do Congresso.
No presente caso, contudo, a entrada em campo
do Supremo tem razão de existir. Não se está aqui negando a autoridade que
deputados e senadores, enquanto representantes da vontade popular, têm de dar a
palavra final em matérias legislativas. Mas o exercício dessa prerrogativa está
sujeito a certas determinações constitucionais e legais.
Desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, de
2001, o próprio Legislativo estabeleceu que a concessão de qualquer incentivo
fiscal deve vir acompanhada de medidas que compensem a perda de arrecadação.
Para reforçar esse entendimento, na Emenda Constitucional nº 95 o Congresso
estabeleceu (com apoio de muitos de seus membros atuais) que qualquer proposta
de aumento de despesas ou de renúncia tributária deve vir acompanhada de
estimativa de seus impactos orçamentário e financeiro.
Se a maioria dos membros do parlamento
entende que a desoneração da folha de pagamentos deve ser mantida até 2027 e
ampliada para as prefeituras, que assim o seja. Mas deputados e senadores
precisam indicar de onde vão tirar o dinheiro para esse objetivo - e isso não
aconteceu no presente caso.
Motivada ou não por interesses políticos, a
liminar de Zanin é uma ação contra o populismo fiscal que impera no Congresso
atual.
*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Um comentário:
Exatamente.
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