segunda-feira, 29 de abril de 2024

Demétrio Magnoli - Nas relações dos EUA com Israel, é o rabo que abana o cachorro

O Globo

A falsa noção de que Israel é um instrumento geopolítico das estratégias de Washington no Oriente Médio faz parte do manual de dogmas da esquerda. Joe Biden cometeu o maior erro de sua longa carreira ao acreditar nela, imaginando que exerceria influência decisiva sobre a condução da guerra em Gaza.

“Quem, porra, ele pensa que é? Quem, aqui, é a porra da superpotência?”, rosnou Bill Clinton para seus assessores em 1996, depois de suportar uma preleção de Netanyahu. Nas relações dos Estados Unidos com Israel, é o rabo que abana o cachorro.

Israel opera segundo seus próprios interesses — ou, dito de outro modo, segundo o que seus governos definem como o interesse nacional. Da expedição militar a Suez, em 1956, à expansão dos assentamentos, a partir de 1977, o Estado judeu adquiriu o hábito de contrariar seu maior aliado. Uma das raras exceções relevantes foi a concessão de Golda Meir a Henry Kissinger, poupando o sitiado 3º Exército egípcio na guerra de 1973. A primeira-ministra pagou o preço da providencial ajuda militar americana na fase crítica do conflito — e abriu caminho para os acordos de paz com o Egito.

Biden abraçou Netanyahu, física e politicamente, no dia seguinte às atrocidades do Hamas do 7 de Outubro. Daí, dirigiu Blinken, seu secretário de Estado, o Pentágono e a CIA a operarem com o governo e as forças armadas israelenses. A ideia do presidente era moldar a guerra em Gaza de forma a minimizar o sofrimento da população civil e, ao mesmo tempo, esculpir uma saída política para a crise. A “porra da superpotência” fracassou nas duas metas, chocando-se contra o rochedo da sabotagem de Netanyahu.

A ambição de Biden era fazer um rato parir uma montanha. Blinken percorreu várias vezes as capitais árabes do Oriente Médio para articular o “day after”: um acordo de administração de Gaza pela Autoridade Palestina (AP) com amparo militar e financeiro egípcio, jordaniano, saudita e dos Emirados Árabes. No fim do arco-íris, surgiria um acordo de paz entre Israel e Arábia Saudita, em troca de um roteiro rumo ao Estado palestino.

O edifício projetado por Biden selaria uma vasta aliança patrocinada pelos Estados Unidos, isolando o Irã e suas milícias regionais. Netanyahu vetou cada parte do plano, enquanto promovia uma brutal punição coletiva dos palestinos em Gaza, mas também na Cisjordânia. Na prática, em nome da preservação de sua coalizão de governo com fanáticos supremacistas judaicos, rejeitou a oferta de um acordo com a AP, explodindo preventivamente as fundações de uma ordem estável pós-Hamas.

Os Estados Unidos resmungaram, depois rosnaram — e, finalmente, ajoelharam. Na ONU, desistiram dos vetos a resoluções de cessar-fogo. Ao telefone, num diálogo dramático, Biden exigiu de Netanyahu, como mínimo, a desobstrução da ajuda humanitária aos civis de Gaza. Circula a versão verossímil de que, nesse telefonema, brandiu a ameaça de interrupção do envio de material bélico ofensivo. O canhão, porém, não tinha obuses. O Congresso acaba de aprovar um bilionário pacote de transferências militares extraordinárias a Israel.

O equívoco sai caro. No plano internacional, o vencedor da guerra de Netanyahu chama-se Vladimir Putin. No plano interno, chama-se Donald Trump. Washington assiste, impotente, à estagnação dos Acordos de Abraão, que se concluiriam com a normalização de relações entre Israel e Arábia Saudita. Mas, sobretudo, experimenta a reação do “Sul Global” à tragédia humana em curso, que projeta um cone de sombra sobre os atentados do Hamas em 7 de outubro. A guerra de Netanyahu tornou-se a guerra de Biden. O presidente perdeu a aura de protetor de uma ordem internacional baseada em regras conferida pela invasão russa da Ucrânia.

Nos Estados Unidos, a onda de protestos nas universidades sinaliza algo mais profundo: a indignação generalizada dos jovens diante da interminável mortandade em Gaza. Há indícios de que uma base eleitoral segura dos democratas pode desistir de votar, assestando um golpe fatal nas chances de Biden. O rabo que abana o cachorro tornou-se um grande eleitor de Trump.


5 comentários:

Mais um amador disse...

" Quem, aqui, é a porra da superpotência ? "

Hahahahah

Mais um amador disse...

Muito bom !

😅

Daniel disse...

Magnoli é incompetente em energia, biologia e alguns outros assuntos. Neles, suas pretensão e presunção muitas vezes iludem leitores descuidados. Mas, na questão do Oriente Médio, ele é um dos poucos colunistas que melhor captou a situação e consegue analisar e explicar didaticamente as BARBARIDADES que ocorrem lá. A coluna de hoje é realmente BRILHANTE! Do que já li, ouvi e vi na TV, ninguém no Brasil colocou tão bem esta relação entre EUA e Israel. Parabéns ao colunista por este texto, e ao blog por divulgar seu trabalho, tão oscilante e polêmico.

ADEMAR AMANCIO disse...

Lendo e aprendendo.

marcos disse...

Daniel é um tremendo petralha -a soldo?-. Então, precisa atacar até quando elogia.

O texto é muito bom, como sempre, em qualquer assunto.

MAM