segunda-feira, 29 de abril de 2024

Bruno Carazza - O Orçamento entre o Direito e a Política

Valor Econômico

Suspensão de desoneração tem fundamento técnico e jurídico, mas esbarra na Política

O noticiário nos últimos anos faz parecer que todas as divergências entre Executivo, Legislativo e Judiciário são simplesmente uma briga por poder. Na maioria das vezes, é disso mesmo que se trata. Mas nem sempre.

A desoneração da folha de pagamentos é um programa temporário criado em agosto de 2011 pela então presidente Dilma Rousseff, com duração prevista até dezembro de 2012. Desde então vem sendo continuamente prorrogado, a despeito de seu alto custo fiscal e de resultados econômicos duvidosos.

Nesse período, Joaquim Levy (ministro da Fazenda de Dilma 2), Henrique Meirelles (Michel Temer), Paulo Guedes (Bolsonaro) e Fernando Haddad (Lula 3) tentaram acabar com o benefício. Em vão.

Os últimos capítulos dessa novela, porém, têm sido especialmente tensos. A desoneração estava prevista para se extinguir no último dia de 2023, mas em 25 de outubro o Congresso prorrogou os benefícios por mais quatro anos. Como se não bastasse, ainda reduziu a alíquota de contribuição para a Previdência sobre a folha de pagamentos de boa parte dos municípios brasileiros de 20% para 8%.

Lula, porém, vetou integralmente a proposta em 23 de novembro. Como a palavra final na tramitação de projetos de lei cabe sempre ao Poder Legislativo, em 14 de dezembro o Congresso se reuniu e derrubou a decisão do presidente da República, numa votação bastante expressiva: 60 a 13 no Senado e 378 a 78 na Câmara dos Deputados. A prorrogação da desoneração de alguns setores intensivos em mão-de-obra estava garantida, assim como a redução da contribuição previdenciária das prefeituras.

Mas o governo resolveu não jogar a toalha tão facilmente. No apagar das luzes de 2023, Lula editou uma medida provisória (MP nº 1.202) em 28 de dezembro revogando a desoneração da folha para as empresas e substituindo-a por um alívio tributário bem mais limitado, que teria efeitos a partir de primeiro de abril de 2024. No caso dos municípios, a redução da alíquota foi cancelada.

Pegos de surpresa, os parlamentares reagiram com fúria. Interpretando a ação do governo como uma medida arbitrária contra uma deliberação que teve amplo apoio de seus integrantes, os líderes do Congresso ameaçaram derrubar a MP.

Lula e Haddad não quiseram pagar pra ver, e editaram em 27 de fevereiro de 2024 uma nova medida provisória (a MP nº 1.208), revogando a revogação da desoneração da folha de pagamentos para as empresas - embora o cancelamento da redução da contribuição previdenciária dos municípios tivesse sido mantido.

O recuo do governo não foi suficiente para aplacar o descontentamento dos deputados e senadores. Quando chegou o momento de prorrogar o prazo da medida provisória, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não estendeu os efeitos dos dispositivos que aumentavam a alíquota previdenciária das prefeituras.

Na prática, estava reestabelecida a deliberação do Congresso que tinha derrubado o veto de Lula: a desoneração da folha das empresas estava mantida até o fim de 2027 e os municípios passariam a pagar apenas 8% sobre sua folha de pagamentos.

O placar do jogo parecia resolvido, com vitória dos parlamentares. Mas o governo surpreendeu novamente ao recorrer ao tapetão.

Na última quarta-feira (24) a Advocacia-Geral da União ingressou no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade da decisão do Congresso e pedindo o cancelamento dos alívios fiscais concedidos às empresas e prefeituras beneficiadas pela desoneração.

A ação (ADI nº 7.633) foi distribuída para o ministro Cristiano Zanin, que já cuidava de um processo com a mesma temática. O ministro agiu rápido, e no dia seguinte concedeu uma liminar atendendo provisoriamente ao requisitado pelo governo.

A liminar de Zanin foi lida como mais um sinal de intromissão do STF a favor do governo Lula, impondo sua vontade de modo arbitrário sobre uma decisão do Congresso.

No presente caso, contudo, a entrada em campo do Supremo tem razão de existir. Não se está aqui negando a autoridade que deputados e senadores, enquanto representantes da vontade popular, têm de dar a palavra final em matérias legislativas. Mas o exercício dessa prerrogativa está sujeito a certas determinações constitucionais e legais.

Desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2001, o próprio Legislativo estabeleceu que a concessão de qualquer incentivo fiscal deve vir acompanhada de medidas que compensem a perda de arrecadação. Para reforçar esse entendimento, na Emenda Constitucional nº 95 o Congresso estabeleceu (com apoio de muitos de seus membros atuais) que qualquer proposta de aumento de despesas ou de renúncia tributária deve vir acompanhada de estimativa de seus impactos orçamentário e financeiro.

Se a maioria dos membros do parlamento entende que a desoneração da folha de pagamentos deve ser mantida até 2027 e ampliada para as prefeituras, que assim o seja. Mas deputados e senadores precisam indicar de onde vão tirar o dinheiro para esse objetivo - e isso não aconteceu no presente caso.

Motivada ou não por interesses políticos, a liminar de Zanin é uma ação contra o populismo fiscal que impera no Congresso atual.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Exatamente.