quarta-feira, 6 de novembro de 2024

A mensagem das eleições – Roberto DaMatta

O Globo

Não seria tempo de governar menos para a parentela, partido, ideologia, e mais para as carências das cidades e do povo anônimo, relevante apenas no período eleitoral?

A mensagem destas eleições não seria a reformulação de implacáveis polos? Elas não apresentam o desejo de tempos mais igualitários e democráticos? Eleição que nas brutais cadeiradas e repugnante má-fé confirma nossa dificuldade de competir como iguais, vendo os adversários como alternativa, e não como inimigo?

O equilíbrio dos eleitores, comprovando que sabem votar, expressa a domesticação das dualidades negativas que vão dos “dois Brasis” — o desenvolvido e o subdesenvolvido — ao clássico e messiânico “litoral/sertão”; assenta-se na oposição da casa/rua, do sabido/trouxa e chega ao cósmico Fla-Flu de Nélson Rodrigues.

No meu entender, o resultado eleitoral estampa o velho “nem um nem outro”. É sinal dos estertores para a polarização, sempre embrulhada em redes de relações pessoais, entre uma esquerda santificada e pura, destinada a cuidar do povo pobre e do pobre povo, contra uma direita satânica, compromissada com o mercado e com o imperialismo ianque.

Ao sinalizar a recusa da polaridade negativa, esse resultado não seria revelador do elo moral escondido entre Lula e Bolsonaro? Sim, porque sem o Lula do petrolão, não haveria o Bolsonaro da negação e do golpe. A preferência para o “centro” mostra o esvaziamento das fórmulas tipo bala de prata esquerdistas e do caos “salvacionista” da direita.

O resultado das urnas não é um gesto de esperança da cura de nossa estadomania, estadolatria e estadopatia? A fé cega de que será exclusivamente pelo Estado que a sociedade, vista como errada ou doente, inviável ou feudal e torta pela tara de origem racial doentia, seria consertada? Corrigida e curada por seus luminares, donos das receitas legais que logo anistiam os desviantes em função de suas prerrogativas que reagem ao poder público.

Não seria o ajustamento entre costumes, práticas sociais, legislações e diretrizes públicas que os eleitores pretendem? Não seria uma mensagem de que os extremos são reais, mas podem ser complementares? Não seria essa humildade de ser eleito para o povo e não pelo povo, como manda o populismo?

Não seria este pleito municipal um voto devotado a eleger quem promete mais liberdade para trabalhar com autonomia individual? Com menos chavões ideológicos e ineficiência cartorial, como dizia Hélio Jaguaribe? Com mais competência e menos da pomposa burrice legal que facilita a malandragem burocrática dos jeitinhos e da grossa corrupção?

Menos Estado onipotente e mais sociedade com liberdade e consciência dos limites dos seus costumes? Não seria essa a aspiração de todos nós, cansados de legalismos que excluem os privilegiados — seres isentos e acima das leis?

Não seria a hora de domesticar o elitismo de direita e de esquerda e sair dos privilégios e dos palácios feitos por nobres, mas irresistíveis aos eleitos pelo povo? Não seria tempo de mais coerência jurídica, condenando os que usam a máquina do Estado para suas ambições? Não seria tempo de governar menos para a parentela, partido, ideologia; e mais para as carências das cidades e do povo anônimo, relevante apenas no período eleitoral?

Quando — parece presumir o resultado eleitoral — uma dessas figuras será mesmo enjaulada provando que a lei vale para todos?

Esta eleição inventou o “pobre de direita”, a expressão mais reacionária do direito de escolher vigente nos Estados Democráticos de Direito. A direita estigmatizada faz perna com o “pobre de esquerda”, que também tem seu ponto cego como todo posicionamento ideológico.

Aliás, cabe perguntar: quem é mais conservador? Os esquerdistas, que permanecem atados a sua fé nos “operários de todo o mundo, uni-vos”, ou este velho cronista, que simplesmente tem fé na obrigação de compreender os inesperados? As permanentes surpresas que destoam e sepultam nossas previsões e determinismos; e escancaram a surpreendente porta da História.

 

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