O Estado de S. Paulo
Essa realidade não é fruto do acaso, mas de modos de proceder incorporados como normais, apesar de seus nefastos efeitos
Temos a terceira maior população carcerária
do mundo – prendemos muitas pessoas, investimos muitos recursos públicos aí –,
mas não somos um país seguro. Há um alto índice de criminalidade e de
insegurança, que afeta a vida das pessoas, das famílias, das empresas, dos
negócios, de todo o País. Entender e enfrentar as causas desse cenário de
disfuncionalidade do sistema de Justiça penal é, a meu ver, um imperativo
cívico e ético, um cuidado necessário com a coletividade: com o presente e o
futuro do Brasil.
A melhoria do sistema de Justiça penal não é uma missão impossível. Neste momento, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) tem a oportunidade de corrigir um antigo erro seu e melhorar significativamente a qualidade das investigações que embasam as ações penais. Não adianta processar e prender muita gente, se os processos penais são superficialmente instruídos, se eles não desvendam a dinâmica do crime, se eles não prendem quem deveria ser preso.
Em 2003, o TJRJ aprovou uma orientação para
os julgamentos penais com o seguinte teor: “O fato de restringir-se a prova
oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a
condenação”. Com isso, o tribunal do Rio de Janeiro formalizou uma prática
habitual no País, mas que não costuma ser tão explícita: estabeleceu que a
palavra de um policial deveria ser prova suficiente para condenar uma pessoa à
prisão.
Recentemente, a Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro solicitou a revisão dessa súmula, por desrespeitar
importantes direitos fundamentais. Ela autoriza o Estado a pôr na cadeia uma
pessoa sem nenhum elemento objetivo, apenas com base no testemunho de outra
pessoa. Dou um exemplo. Segundo a orientação do TJRJ, um cidadão pode ser
condenado por crime contra o Estado Democrático de Direito em razão de um
policial dizer que ele estava participando de uma tentativa de golpe de Estado.
Não seria necessário apresentar nenhuma outra prova. Esse modo de proceder,
absolutamente fora de propósito, não é uma hipótese teórica. A Justiça
utiliza-o diariamente no julgamento de muitos crimes; por exemplo, do tráfico
de drogas.
É grave violação dos direitos individuais
condenar uma pessoa com base apenas no
O Estado reserva-se o direito de selecionar e
resumir as cartas. Correspondência sem identificação (nome, RG, endereço e
telefone) será desconsiderada testemunho de um policial. Ela fica privada do
seu direito de defesa: se basta um policial afirmar que ela cometeu um crime
para que o Estado possa lhe imputar esse crime, ela simplesmente fica à mercê
do Estado e de seus agentes. No fim, em vez de ser uma avaliação objetiva das
provas, o processo penal torna-se uma escolha subjetiva a respeito de qual palavra
deve prevalecer. Não é difícil de perceber que, sob essa lógica, o réu é posto
numa posição de grave desequilíbrio, de fragilidade, de não cidadania.
Mas a súmula do TJRJ não apenas fragiliza
direitos individuais. Ela é prejudicial para todo o sistema de Justiça penal,
uma vez que autoriza e favorece investigações frágeis. Se basta a palavra do
policial para condenar uma pessoa, não há incentivo para realizar uma
investigação séria – e aqui reside um dos principais problemas da orientação
jurisprudencial do tribunal do Rio de Janeiro. O sistema de Justiça penal passa
a se basear num trabalho probatório superficial, cada vez mais superficial.
Se é suficiente a palavra do policial, por
que os órgãos de investigação vão investir tempo e recursos para buscar mais
provas, para entender mais a fundo o que se passou? Qual será o incentivo para
que se realize uma apuração detalhada, para que se conduza um trabalho de
inteligência? O caso já está resolvido a partir do momento em que se tem um
policial disposto a testemunhar no processo, mesmo que existam indícios
divergentes.
E-mail: forum@estadao.com
Eis uma das razões pelas quais colocamos cada
vez mais pessoas na cadeia, mas as cadeias do crime continuam intactas. Em vez
de o inquérito policial e o processo penal serem ocasiões de desvendar a
dinâmica do crime, eles se tornam uma indústria de pôr gente na cadeia, sem
apurar muito, sem entender o que se passou, sem revelar elementos mínimos para
a prevenção de novos crimes. É tudo um grande mistério – ninguém sabe
exatamente o que ocorreu no caso que está sendo julgado –, mas está lá a
palavra do policial apta a condenar o acusado. Há uma aparência de eficiência,
um simulacro de produtividade.
Cadeias cheias e ruas perigosas. Essa
realidade não é fruto do acaso, mas de modos de proceder incorporados como
normais – alguns deles chegam a se tornar súmula de tribunal –, apesar de seus
nefastos efeitos sistêmicos. Defensor incansável da necessidade de uma
atividade probatória mais técnica, o ministro Rogerio Schietti Cruz, do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconhece que só assim, com processos
penais baseados em provas consistentes, se pode “condenar quem deve ser
condenado e absolver quem deve ser absolvido”. Nessa tarefa, um grande aliado,
lembra o ministro do STJ, são as câmeras corporais dos policiais.
A melhoria do sistema de Justiça penal não é
uma utopia. Há caminhos possíveis e eles são conhecidos.
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