O Estado de S. Paulo
Uma sociedade fragmentada, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, é propensa a complôs, ações terroristas, lideranças autoritárias
O golpe de Estado aconteceria em dezembro,
após as eleições presidenciais de 2022, para impedir a posse dos eleitos e
sequestrar Alexandre de Moraes. Os três seriam então simplesmente assassinados.
Agora, a Polícia Federal revelou tudo, reunindo as apurações em um calhamaço de
quase 900 páginas.
O planejamento golpista teve uma história.
Começou em 2019, com as mentiras sobre fraude eleitoral, forjadas para instigar
a população e mexer com os militares. Nos quatro anos seguintes, o gabinete de
Jair Bolsonaro foi um larvário de articuladores e “tropas de combate”, que
infestou a opinião pública com mensagens salvacionistas causadoras de caos e
temor.
Tudo o que houve de estranho e esquisito naqueles quatro anos esteve encadeado: ministros desqualificados, ataques ao sistema eleitoral, desinformação, militares boquirrotos e indisciplinados, discursos virulentos, acampamentos “populares” às portas de quartéis, kids pretos empoderados, milícias digitais, toda uma mixórdia de fatos, personagens, palavras e atitudes, difundidas sibilina ou ostensivamente.
Havia ódio impulsionando a movimentação,
juntamente com uma visão obtusa do mundo, brutal, tosca, sem preocupação
pública. Forjou-se assim uma cultura hostil à sociedade, calcada em um
“patriotismo” rastaquera.
Os golpistas construíram um castelo no ar.
Pensaram ter mais força e melhor organização, e acharam que a fortuna (as
circunstâncias) os beneficiaria. Que as Forças Armadas e o sistema político os
apoiariam e que um “clamor popular” empurraria os tanques pelas ruas. Na hora
H, deram-se conta de que a montanha a ser escalada era mais alta, a democracia
era resiliente e não seria abatida com facilidade.
O golpe morreu na praia, em dezembro de 2022.
Bolsonaro fugiu do País dias antes de transmitir o cargo. Em 8 de janeiro de
2023, bateu o desespero: uma chusma fanatizada e devidamente orientada depredou
a Praça dos Três Poderes. O ato repulsivo mostrou a face tragicômica do plano,
deixando claro que ele carecia de gente preparada, de lideranças competentes,
de uma ideia razoável de País, de um princípio de honra.
O ataque à democracia não se consumou, mas
produziu estragos.
Passaram-se dois anos para que a sordidez
acumulada fosse investigada e exposta pela Polícia Federal. Foram então presos
quatro militares e intimadas dezenas de oficiais de alta patente, assessores,
um padre e o próprio Bolsonaro, que, segundo o inquérito, “planejou, atuou e
teve o domínio de forma direta e efetiva” do golpe. Uma página que envergonha a
história nacional começou, assim, a ser virada.
As revelações deste novembro de 2024 estão
sendo esmiuçadas. O importante, agora, é refletir sobre as razões que
possibilitaram a cogitação golpista, cuja gosma infecta escorreu pelo gabinete
presidencial, pelo entorno de quartéis e redes sociais. Por que pensaram em
algo tão estarrecedor? Além do incentivo do presidente, houve outros estímulos?
As Forças Armadas não caíram na esparrela, mas não visualizaram o que se
tramava?
A complexidade da vida atual explica parte do
problema. Hoje ficou mais fácil tramar conspirações. Por mais que haja
anteparos estatais, há muitas brechas para serem exploradas com más intenções.
O Brasil não está sozinho nessa condição.
Uma sociedade fragmentada e com dificuldades
de coesão, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais,
tudo girando em alta velocidade, é propensa a complôs, ações terroristas e
lideranças autoritárias. A confiança nas instituições declina, as reclamações
se sucedem e a insegurança generalizada clama por uma “ordem” que caia do céu,
como se fosse apaziguar mentes inquietas e sofridas. Diálogos refluem, a
política torna-se uma batalha mais árdua.
Descrições desse tipo devem ser
relativizadas. A desconfiança cresce, mas não predomina inconteste. As
instituições falham, mas não deixam de respirar. O sistema democrático enfrenta
dificuldades, mas se reproduz. Os cidadãos parecem desnorteados, mas a cada dia
são mais bem informados e se mostram capacitados para enfrentar os desgovernos
e brigar pela vida.
Tragédias servem para que aprendamos algumas
coisas. Uma delas é exigir que se vá a fundo na apuração das responsabilidades.
Anistiar os envolvidos é debochar da sociedade. Eles precisam ser punidos,
exemplarmente, para que tragédias semelhantes não voltem a acontecer.
O País não está em clima de guerra civil,
como mostraram as eleições municipais de 2024. Pode haver gente confusa e
reacionária, mas não há uma maioria expressiva com sangue nos olhos e facas nos
dentes.
É um erro trabalhar com narrativas que
simplifiquem o que é complexo. O binarismo político, a falta de diálogo, os
embates polarizados jogam contra os democratas, afastando-os da política como
negociação e busca de consensos criativos.
A inteligência política é indispensável
quando o cenário é estranho e escorregadio. Os democratas precisam tratá-la
como recurso estratégico. Tanto para resolver problemas e construir um país,
quanto para minimizar o risco de que pasmaceiras golpistas ganhem corpo e alma.
2 comentários:
Okays...
Mas, o que seria, exatamente, uma sociedade " com uma cultura política rarefeita " ?
• A finlandesa, cuja população vive nas penumbras da miséria ?
• A australiana ?...
• A neozelandeza?...
• A holandesa ?...
Se a questão fosse resolvida, exclusivamente, por determinada sociedade ter " uma cultura política ' rica ' ou ' intensa ' ":
• A Argentina não estaria no buraco em que se meteu;
• A Rússia não seria a autocracia que se tornou;
• A China viveria eternamente na promessa de um comunismo maoista;
• A França, eterna promessa revolucionária, seria o país mais que perfeito do mundo.
Mania de achar que respostas simples podem dar cabo de problemas complexos.
Poorra !
Não adianta vento em barco sem leme… pra quem não tem rumo qualquer vento serve
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