sábado, 14 de dezembro de 2024

Queda de braço - André Barrocal

CartaCapital

No país do rentismo, a indústria divide-se entre quem se rebela contra as altas taxas e quem lucra com elas

Na última reunião sob a batuta de Roberto Campos Neto, escolhido por Jair Bolsonaro, para decidir a taxa básica, o Banco Central a subiu pela terceira vez seguida. O anúncio na quarta-feira 11 colocou a Selic em 12,25% ao ano, o que faz do Brasil o vice-campeão mundial de juro real, cerca de 9,5%, descontada a inflação. A Turquia é ouro (13%). A Rússia, nação em guerra, bronze (em torno de 9%).

Conter a inflação foi a justificativa apontada pelo BC em comunicado para elevar a taxa em 1 ponto porcentual e avisar que repetirá essa dose duas vezes em 2025, quando Campos Neto terá dado lugar a Gabriel Galípolo, escolhido por Lula, no comando da autoridade monetária. “Incompreensível e totalmente injustificado”, comentou a Confederação Nacional da Indústria, em uma nota pública após a alta da Selic.

Na véspera da reunião do BC, a CNI havia emitido outra nota e criticado a hipótese de o banco não só manter o juro ladeira acima, como de fazê-lo mais do que em setembro (0,25 ponto ­porcentual) e novembro (meio ponto). “Seria uma medida excessiva em termos de controle da inflação e apenas traria restrições adicionais ao crescimento do País”, dizia o texto. “A prioridade deve ser a implementação de uma agenda que viabilize a retomada dos cortes na taxa de juros.”

Notas pré-Copom são uma criação do atual presidente da CNI, o baiano Ricardo Alban, de 64 anos, dono de uma fábrica de biscoitos, a Tupy. Servem para pressionar o BC. Costumam ter tom duro, acertado por Alban com o economista-chefe da confederação, Mario Sergio Telles. A primeira é de março de 2024, cinco meses depois da posse de Alban para um mandato de quatro anos. Mandato que tem no combate ao juro alto um pilar.

À frente desde 2021 da Fiesp, a federação das indústrias paulistas, o mineiro Josué Gomes da Silva está na mesma trincheira. “O juro alto proposto para ser provisório no Plano Real (de 1994) tornou-se permanente”, declarou a O ­Estado de S. Paulo em julho. Gomes da Silva é filho do falecido José Alencar, vice de Lula no passado, e herdeiro da têxtil Coteminas. Suas críticas e as de Alban não se limitam a palavras. São acompanhadas por dados e análises das consequências. “O custo financeiro embutido no produto final pode representar até 25% do preço ao consumidor – uma situação insustentável para a competitividade do setor industrial”, anotou Alban em outubro, em artigo na Folha de S.Paulo. Ao Estadão ele tinha dito que a inflação acumulada desde 1994 foi dez vezes menor que os lucros gerados pelo juro real. Em um evento em agosto, que o gasto público com juros, 4,7 trilhões de reais em uma década, superou despesas somadas com saúde, educação e infraestrutura, de 4,3 trilhões.

Cada ponto porcentual de juro acima do que seria uma taxa neutra no Brasil custa 50 bilhões de reais por ano, segundo Rafael Lucchesi, diretor da CNI para a área de desenvolvimento industrial. Juro neutro é aquele que não incentiva nem atrapalha a economia. Para Lucchesi, seria hoje de 9,75%, com taxa real de 5% somada à inflação de 4,8% em 12 meses até novembro. Com a decisão do BC de levar a Selic a 12,25%, o desperdício de verba pública será de 120 bilhões em um ano. “A estabilidade macroeconômica é conquista importante. Mas para fazer isso colocamos os juros acima do normal desde o Plano Real”, diz. O industrial prossegue: o juro alto pariu o “rentismo improdutivo”. Por que investir em fábricas, em pesquisa e tecnologia, se grana parada no sistema financeiro se multiplica facilmente? Em três décadas, o crescimento do PIB tem sido medío­cre, salienta. De 2011 a 2021, foi de 0,5% ao ano, em média. Nesse ritmo, demoraria 150 anos para o Brasil dobrar a renda per capita. Em 2023, ela estava em 3,9 mil reais mensais, numa divisão do PIB pela população. Aquela vista de fato nos domicílios foi de 1,8 mil, segundo o IBGE. Situação que melhoraria com uma indústria mais presente no PIB. O rentismo leva à desindustrialização, avalia Lucchesi.

Em 1991, a fatia da indústria no PIB era de 21%. Em 2020, de 9%. Pior para o trabalhador. A indústria paga mais. A média salarial no setor foi de 3,1 mil reais em novembro, conforme o IBGE. No comércio, de 2,6 mil. No agro, de 1,9 mil.

O Brasil vive um momento crucial, até por obra de circunstâncias globais. A transição energética e uma geopolítica que opõe Estados Unidos e China empurram governos a gastar mais e a adotar medidas de política industrial. Movimentos empacados no Brasil pelo juro alto. Nossa agenda de desenvolvimento foi “sequestrada pela rentismo improdutivo dos bancos numa aliança com a mídia”, diz ­Lucchesi. “É preciso derrotar essa agenda.”

Não é fácil. Em uma tarde de agosto, um empresário da construção pesada fez em Brasília uma espécie de confissão a ­CartaCapital. A indústria, comentou, tem dificuldade de defender sua agenda por medo de apanhar na mídia. Essa agenda conflita com aquela do mercado financeiro, e o dito “mercado” tem bastante espaço no noticiário, além de injetar verba de publicidade em veículos de comunicação e até controlar diretamente alguns. “Se você pegar os jornalões, os bancos são os grandes patrocinadores”, afirma Haroldo da Silva, economista-chefe da Associação Brasileira da Indústria Têxtil, a Abit.

O próprio setor industrial tem culpa também, teoriza no livro A Ilusão Neoliberal da Indústria, lançado este ano. Os industriais, diz, pertencem a círculos sociais dominados pela visão financista. Romper com o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamava de “capital social” exigiria certo sacrifício. “Há uma captura de corações e mentes pelo sistema financeiro com o uso de intelectuais orgânicos. É um processo muito bem engendrado, representado pelo neoliberalismo, que atinge todas as classes e camadas da sociedade.” Não só: “Você tem industriais que passaram a ser também banqueiros, aí fica difícil reclamar de juro alto. Com uma ‘Bolsa Faria Lima’ de 800 bilhões de reais por ano, nenhum empresário vai fazer esse enfrentamento, pois também ganha com isso”.

Flávio Rocha, da Riachuelo, Joesley Batista, da JBS, e Rubens Menin, da MRV Engenharia, são exemplos de rentistas da indústria e da construção civil. Rocha, de 66 anos, é do Grupo Guararapes, confecção fundada em 1947. A Riachuelo é parte do negócio. Em 2008, o grupo entrou no ramo financeiro. Criou a Midway, financiadora dos clientes da marca. Em 2023, a Midway tinha 1,1 bilhão de reais aplicados em títulos públicos e CDBs, conforme o balanço do grupo. Título público possui ganho atrelado ao juro do BC. O CDB rende coisa parecida. Os rendimentos do grupo com tais aplicações somaram 235 milhões. A receita líquida total da Midwway representou 25% do faturamento do grupo. De janeiro a setembro de 2024, a proporção manteve-se, embora o total investido em títulos e CDBs tenha caído pela metade, 538 milhões, e o rendimento dessas aplicações encolhido para 14 milhões. Em 2023 e nos primeiros nove meses de 2024, o grupo acumulou 48 milhões de prejuízo.

O frigorífico JBS nasceu em 1953, em Goiás. O conglomerado controla, entre outras companhias, a Seara e a Swift, processadoras de alimentos. Em 2011, fundou o Banco Original. Em 2023, tinha 12 bilhões de reais em CDBs e 1 bilhão em títulos públicos, segundo o balanço. Suas receitas com juros, ou seja, com aplicações financeiras, foi de 1,6 bilhão de reais. Sem elas, o prejuízo do grupo superaria aquele registrado, de 1,1 bilhão. De janeiro a setembro de 2024, a empresa acumula a mesma receita de juros de 2023 como um todo, 1,6 bilhão. As aplicações em CDBs e títulos cresceram para 15,5 bilhões. O resultado do grupo foi um lucro de 8 bilhões até setembro.

A MRV é uma construtora surgida em 1979, em Minas Gerais. Menin, o proprietário, é dono do Banco Inter. No ano passado, a MRV tinha 1,5 bilhão em fundos de investimento, aplicação que em geral tem no juro do BC uma bússola. Em títulos públicos, tinha 473 milhões. As receitas financeiras foram de 220 milhões. Uma fonte capaz de minorar o prejuízo de 30 milhões no ano passado. De janeiro a setembro de 2024, a aplicação em fundos de investimento diminuiu para 998 milhões de reais. Cerca de metade, 528 milhões, segue em títulos públicos. As receitas financeiras totalizaram 222 milhões de reais. Recursos outra vez capazes de reduzir o prejuízo geral da companhia, de 240 milhões nos primeiros nove meses.

“Vivemos uma distopia”, diz Lucchesi, da CNI. O mercado transformou crescimento e emprego em coisas ruins. “O bom é a estagnação de 30 anos, em que só poucos ganham? O Brasil precisa romper com o fracasso. Vivemos hoje um consenso que nos trouxe ao fracasso como País.”

A alta de um ponto na Selic era aventada como possibilidade positiva, uma semana antes, por outro economista-chefe de empresa do mercado. Caio Megale ocupa a função na XP desde 2020. Antes, tinha integrado a equipe de Paulo Guedes no Ministério da Fazenda. Em 3 de dezembro, havia dito ao Estadão, a propósito de nova Selic à vista: “Faz sentido o Banco Central, como a gente fala em jargão da economia, pular na frente da curva, se antecipar ao processo e tomar uma atitude um pouco mais enérgica (e elevar o juro em um ponto)”.

O negócio da XP é captar e aconselhar investidores. Ela própria possui um ­site de notícias econômicas, o Infomoney. De 2017 a 2023, teve o Itaú como sócio. O banco é a marca mais desejada por agências de publicidade, segundo pesquisa de setembro do jornal Meio e Mensagem. Tradução: é desses que injetam muito dinheiro em propaganda na mídia. Também possui um site de economia, o Inteligência Financeira. A Editora Globo foi parceira do site no início. O economista-chefe do Itaú, Mário Mesquita, era outra voz a defender a alta de 1 ponto porcentual do juro. Logo após a decisão do Copom, estava a comentá-la no site do Estadão.

Parte dos industriais enveredou para o setor financeiro e lucra mais com juros do que com produção

Um dos estrategistas do Banco BTG despontava na mesma reportagem. Álvaro Frasson elogiou o que chamou de comunicado “positivo e importante” do BC, pelo teor duro e que antecipou duas novas elevações da Selic em 2025. “O debate nos próximos três ou quatro meses não é mais política monetária”, declarou. O BTG, de André Esteves, é um peso pesado na comunicação econômica, e não apenas pelos porta-vozes ouvidos na mídia. Alguns de seus acionistas, como Esteves, são donos da revista Exame, comprada em 2019 por 72 milhões de reais. Em 2021, o BTG adquiriu por 690 milhões uma casa de análises, a ­Empiricus, que controla dois sites de notícias econômicas: Seu ­Dinheiro e ­Money Times.

A hegemonia do pensamento da Faria Lima no noticiário econômico explica em grande medida por que 68% dos brasileiros disseram considerar insuficiente o pacote de controle de gastos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Um tema técnico e complexo foi carimbado e encarado pelo cidadão com as lentes do mercado, para quem o pacote é exíguo. Uma semana antes, a autora da pesquisa, a Quaest, havia feito um levantamento com 105 integrantes do sistema financeiro. Queria saber a opinião sobre o governo. O resultado foi um massacre contra Lula: 90% avaliam negativamente a gestão do petista, 86% acham que a economia está no rumo errado, 70% confiam muito em ­Roberto Campos Neto, 75% não confiam nada em ­Haddad, 93% votariam em Tarcísio de Freitas contra Lula em 2026. Choca, mas não surpreende, que a notícia de que o petista teria de passar por nova cirurgia na quinta-feira 12 tenha feito o dólar cair e a Bolsa subir na véspera.

A troca de Campos Neto por Galípolo no BC em janeiro mudará o humor? Um integrante da área econômica espera que sim. Campos Neto, dizem lulistas no governo, trabalhou para minar a confiança do mercado no governo. Outra autoridade torce para Galípolo usar parte das reservas de 360 bilhões de dólares em intervenções cambiais, pois a gangorra eleva a inflação. “Tem de perguntar ao Banco Central: por que a inação? É uma boa pergunta. Será que eles acham que o câmbio está no ponto de equilíbrio?”, pergunta Lucchesi, da CNI. Sobre o que será do BC com Galípolo, comenta: “Espero que haja uma mudança, para o bem do Brasil, não da indústria”. Entidades industriais como CNI e Fiesp manterão a campanha contra o juro alto na era ­Galípolo? Não que possa ocorrer o mesmo, até pelo que pensa Lula do tema “juro”, mas no início do governo Bolsonaro o então presidente da CNI, Robson Andrade, chegou a ser preso por algumas horas pela Polícia Federal, em uma investigação sobre o Sistema S. “Retaliação”, diz Gomes da Silva. No caso da Fiesp, haverá troca de bastão em 2025. Sai Gomes da Silva, volta Paulo Skaf, bolsonarizado no período em que o capitão esteve no poder. Qual Skaf estará de novo em cena? 

Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.

3 comentários:

Mais um amador disse...

Ótima postagem !

Para contrabalançar um pouco, sobre a importância do sistema financeiro na economia, inclusive como suporte para os diversos setores econômicos, sugiro a leitura dos artigos do professor Fernando Nogueira da Costa, titular de Economia da Unicamp, no site " A Terra é Redonda ".

Anônimo disse...

Excelente texto, análise perfeita!

Anônimo disse...

“Campos Neto, dizem lulistas no governo, trabalhou para minar a confiança do mercado no governo.”
Hahahahahahahahahaha

Lulista no governo podem ser aqueles que tem as esposas no tribunal de contas dos estados né