quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Lula e a especulação fiscal - José Serra

O Estado de S. Paulo

Uma breve análise das palavras do presidente Lula é necessária, no mínimo para ajudar os cursos de Economia em sua árdua tarefa de ensinar uma ciência tão inexata

Os últimos dois meses presenciaram um quadro econômico nacional em deterioração e que tem afetado sobremaneira a situação política, incluindo a avaliação do presidente Lula. Vale notar, no entanto, que há dois movimentos em paralelo. Numa via, o descrédito fiscal já vinha minando as perspectivas de mercado há meses. Noutra, um descompasso nos preços tem tornado a inflação uma ameaça e impactado o orçamento familiar em aspectos bastante críticos.

Infelizmente, a teoria econômica é eivada de lacunas na compreensão de diversos dos elementos centrais de nossa vida econômica, como a renda, a produção e os preços, notadamente o preço do nosso dinheiro. Mesmo em relação às causalidades que ganham ares de verdade inelutável, as controvérsias teóricas e práticas são imensas.

É inegável que o preço dos alimentos está na base da dinâmica inflacionária recente que validou a escalada da taxa de juros que o Banco Central vem promovendo, em parte impulsionado pelo câmbio. No entanto, também não há como negar que o resultado do déficit público brasileiro não está distante da maioria dos países relevantes no contexto mundial.

As duas coisas poderiam ser explicadas pela autoridade governamental sem a criação de maiores celeumas, avançando num debate necessário sobre as principais questões da economia brasileira. Mas o fato é que ambas desgastam profundamente o governo Lula. Tanto que o próprio presidente se manifestou sobre o absurdo do preço do ovo e sobre o tamanho do déficit público.

Permito-me transcrever as palavras recentes de Lula sobre o assunto: “Isso é uma bobagem. O déficit fiscal foi zero, ninguém tem mais responsabilidade de fazer as coisas corretas do que eu. Se você for fazer uma dívida para comprar uma casa, tudo bem, mas não se pode gastar à toa. Eu não estou governando pela primeira vez, eu fui o presidente que paguei o FMI, fiz uma reserva internacional que o Brasil não tinha. Quem fala disso (gastos do governo) está querendo viver de especulação”.

Uma breve análise das palavras do presidente Lula é necessária, no mínimo para ajudar os cursos de Economia em sua árdua tarefa de ensinar uma ciência tão inexata.

Comecemos pelos “especuladores”. É verdade que os analistas de mercado têm feito muito alarde em torno da incapacidade do governo federal em administrar seu caixa de forma a gerar credibilidade no que toca às condições de sustentabilidade fiscal. Também importa observar que, por vezes, os comentários que a imprensa colhe junto a estes agentes de mercado venham embarcados numa dose imprópria de interesse particular no jogo do preço dos papéis.

Um aspecto, no entanto, não pode escapar ao mandatário: se a especulação se sustenta no tempo, algo está produzindo o caldo que a alimenta. E esse caldo é produzido pelo próprio presidente Lula, cujo movimento de garantia de apoio à sua área econômica para o controle das contas públicas é, no mínimo, errático e oscilante.

É estranha a fala do chefe de Estado sobre a sua responsabilidade em fazer as coisas corretas. A afirmação deveria ser sustentada por atos que não fossem dúbios no compromisso de manter a situação fiscal sob controle. De nada adianta vociferar contra os que manipulam expectativas sobre o resultado fiscal e, no minuto seguinte, abraçar o velho populismo e negociar com os grupos de interesse que impedem que as contas públicas sejam controladas. Isso, sim, gera as condições para a especulação prosperar.

Cabe também mencionar o lapso de memória sobre o Fundo Monetário Internacional (FMI). Lula deveria lembrar que a situação cambial, naquele final de 2002, apresentou tal nível de deterioração porque o candidato em ascensão cansou de dar declarações de que não respeitaria os contratos e realizaria auditorias em torno das dívidas interna e externa.

A questão das reservas internacionais é outro assunto que deveria ser objeto de maior reflexão por nosso presidente. O nível de reservas chegou a um patamar muitas vezes superior ao necessário para garantir nossas contas externas contra movimentos especulativos. A grande maioria dos analistas econômicos desconhecia a lógica de manter reservas tão altas a um custo fiscal tão absurdo, o que tira dos pobres o dinheiro para as políticas públicas.

Vale observar, para que o leitor compreenda o custo das reservas, que o Brasil, por meio do Banco Central, aplica os dólares que tem em títulos diversos, notadamente os do Tesouro dos Estados Unidos. Mas, como as reservas são de propriedade de agentes privados, o Brasil paga juros em reais a esses investidores. Pequeno detalhe, a diferença entre os juros reais daqui e de lá é absurda e esse custo é arcado pelo Tesouro Nacional.

Importante ressaltar é a ausência de um posicionamento articulado em torno de uma política comum, em que as metas sejam perseguidas por todos dentro do governo federal. Vale dizer, o fracionamento do governo só joga querosene na fogueira do descrédito fiscal, legitimando os especuladores.

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