domingo, 2 de fevereiro de 2025

Trump age com método no segundo mandato – Dorrit Harazim

O Globo

O objetivo maior e final é assumir controle pleno, sistemático e duradouro da máquina federal

Que ninguém se engane: há método no caos imposto por Donald Trump a seu país e ao mundo neste segundo mandato. Não significa que, ao final, ele chegará aonde quer.

Sua primeira temporada na Casa Branca (2017-2021) já havia sido caótica, mais por despreparo e escasso conhecimento de como funciona a máquina governamental. À época, o foco do novato na Presidência era outro — Trump priorizou consolidar sua cumplicidade com os seguidores raiz, os desgarrados da sociedade. Como método, usou e abusou do escárnio compartilhado, da zombaria pública, do linchamento verbal.

“A crueldade os encheu de satisfação e orgulho, fez com que se sentissem próximos uns dos outros”, escreveu em 2018 o jornalista Adam Serwer no ensaio “A crueldade como objetivo”, sobre o impacto da chegada de Trump ao poder.

Ele se referia a imagens do século passado em exposição no Museu da História e da Cultura Afro-Americana, em Washington, que mostram homens de bem, brancos, posando com largos sorrisos junto a corpos negros mutilados, queimados ou pendurados em árvores. Mas também se aplicava ao método do novo governante.

Trump arregimentava votos com sua imitação do sotaque porto-riquenho, em meio aos milhares de mortos e desalojados pelo Furacão Maria. Fazia imitações grosseiras de manifestantes antirracistas, de pessoas com deficiência, de minorias não brancas, de mulheres do movimento #MeToo. Arrancava gargalhadas ressentidas por camadas de preconceitos. Para além do gozo com esse tipo de crueldade, havia o fato de o gozo ser coletivo. “Em algum lugar, entre o amplo espectro que vai de provocações adolescentes ao gáudio de homens brancos sorrindo em linchamentos, está uma comunidade construída sobre a angústia de diferentes. A habilidade do presidente em exercer crueldade por meio da palavra, de gestos e de atos manteve unidos seus seguidores raiz”, apontou Serwer. Trump conseguira fazer do escárnio compartilhado a resposta para a atomização da vida moderna. Reelegeu-se.

Em 2025 a estratégia é outra. O método atual não visa a adesões por cumplicidade, visa à obediência por meio de choque e temor. Desta vez, o caos inicial gerado pela avalanche de decretos é deliberado — ele ajuda a disseminar medo e incerteza. A parcela dos 2,3 milhões de funcionários públicos federais que receberam um e-mail intitulado “Bifurcação na estrada” — e teriam apenas seis dias para pedir demissão remunerada — entrou em pânico. Mesmo suspenso por decisão judicial faltando cinco minutos para entrar em vigor, a confusão e a perplexidade persistem.

Nada melhor que a revitalização da máquina de deportações de imigrantes, contudo, para mergulhar em desassossego famílias, comunidades, cidades e países inteiros. O caráter genérico e impreciso da nova ordem ajudou a turbinar o pânico. A estratégia batizada por Steve Bannon de “flood the zone with shit” (inundar a área com merda, ou saturar o espaço da comunicação com desinformação e versões confusas, dificultando a capacidade do público de discernir a verdade) está a pleno vapor.

Enquanto Trump lança a esmo o número de 1,5 milhão de imigrantes a ser enxotados, o novo czar da fronteira, Tom Homan, aconselha amigos republicanos a baixar as expectativas, pois os recursos são limitados. O mesmo Homan bravateia a criação do disque-denúncia 1-800-DEPORT, deixando em aberto a possibilidade de gratificação a quem dele fizer uso, apesar de já existir serviço análogo, há duas décadas, que recebe 15 mil chamadas mensais.

A newsletter do americano Adrian Carrasquillo, na Bulwark, faz uma pergunta oportuna: o que o governo Trump 2.0 pretende ao disseminar tanto medo? Resposta: a autodeportação. Segundo apuração do repórter junto a ativistas, advogados, republicanos e democratas, o anúncio de medidas punitivas — levadas a cabo ou não — induz famílias inteiras a desesperançar. A ponto de querer partir. Carrasquillo evoca um episódio ocorrido no Vale San Fernando, na Califórnia. A Polícia de Imigração e Alfândega (a temida ICE) fizera uma blitz à procura de oito imigrantes sem documentos e acabou por prender 40 pessoas que espontaneamente admitiram estar em situação irregular. A legislação de vários estados de maioria republicana já prevê a proibição de acesso a educação, transporte público e serviços básicos como água e moradia popular a quem não puder comprovar status migratório legal no país. Como não desistir diante de futuro tão soturno?

É numa esfera pouco visível e longe do noticiário flood the shit que está em curso o objetivo maior e final de Trump: assumir controle pleno, sistemático e duradouro da máquina federal. O conjunto de ordens executivas e medidas adotadas nesse sentido nada tem de caótico — são eficazes, precisas e reveladoras de um planejamento de anos para o desmonte da burocracia qualificada. Um dos primeiros decretos postos em prática pinçou 20 advogados do Departamento de Justiça que atuavam em investigações sobre criptomoedas e violações da integridade pública. Por serem funcionários de carreira, não puderam ser demitidos. Foram realocados para atuar no combate à imigração ilegal. Três departamentos inteiros do mesmo ministério, que poderiam interferir nas atividades extracurriculares de Trump, foram erradicados. A profusão de ações pontuais semelhantes tem se multiplicado em todos os setores da esfera federal.

É um assalto a mão desarmada com mais de 200 semanas de duração.


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