O Estado de S. Paulo
A falta de ética é um movimento destruidor da
substância do Estado Democrático de Direito, consagrado pela Constituição
cidadã de 1988
É generalizada a percepção de que, no momento
atual da vida brasileira, a preocupação com a ética não tem predominado na
conduta dos atores políticos, tanto da situação quanto da oposição.
Dessa carência de eticidade provém a redução
da confiança nas instituições do País que alcança o Legislativo, o Executivo e
o Judiciário.
Democracia requer confiança. Uma confiança
que se vê comprometida pela presença de uma política “fértil em meios e manhas”
(nas palavras de Rui Barbosa), voltada para o bem particular de alguns.
São requisitos de confiança nas regras da
democracia, como esclarece Bobbio, tanto a confiança da cidadania nas
instituições quanto a confiança recíproca entre os cidadãos que integram a
comunidade política. Esta, por sua vez, se vê comprometida pela fragmentação
polarizadora, permeada pela intolerância da sociedade brasileira.
Neste contexto, vale a pena lembrar que a palavra corrupção vem do latim, corrumpere, com o significado originário de estragar, decompor, perverter. Este significado na filosofia aristotélica é uma das espécies do movimento que leva à destruição da substância. A falta de ética é um movimento destruidor da substância do Estado Democrático de Direito, consagrado pela Constituição cidadã de 1988.
A perversão da corrupção, proveniente da
falta de ética, vai além da transgressiva conduta de pessoas, empresas e
associações em esferas da vida nacional. Transcende igualmente o elenco de
crimes tipificados pelo Direito Penal. É um sério problema de profundo alcance
político ao ensejar a corrupção do espírito público, como aponta Raymond Aron.
É o cupim da corrupção na imagem de Políbio,
que transubstancia as formas boas de governo em formas más. No nosso caso, a
democracia de governo de muitos, numa oclocracia de submissão e apequenamento.
Esta, ao consolidar-se, dá espaço para as manhas e meios de demagogos
inconsequentes, propicia as aspirações do cesarismo de falsas lideranças e
promove os vínculos espúrios do dinheiro com o poder que leva à plutocracia.
Isso acaba no que Michelangelo Bovero denomina de caquistocracia – o governo
dos piores.
No Brasil, um ingrediente da caquistocracia
da corrupção é um crescente hiato entre o preconizado pela Constituição de 1988
e os costumes constitucionais, que são a melhor garantia da Constituição. O
costume tem a necessidade das instituições para desenvolver-se. As instituições
têm a necessidade do costume para perdurarem. Uma das virtudes do Estado
Democrático de Direito é o respeito às leis e, muito especialmente, à
Constituição, e uma dimensão da falta de virtude ética é a complacência no
afrouxamento de sua força obrigatória. Evoco nesse sentido os princípios do
artigo 37 da Constituição.
Começo com o princípio da moralidade, que
aponta para o fato de que o direito, como disciplina da convivência humana,
sempre tem como piso um mínimo ético. Esse mínimo ético está em sintonia com os
valores da sociedade, que na redemocratização presidiram a elaboração da
Constituição. Dele emana a cobertura axiológica da boa-fé e da confiança, que
deve nortear, na relação governante-governados, a aquisição e o exercício do
poder. O princípio da moralidade adquire especificidade com os princípios da
legalidade e da impessoalidade.
O princípio da legalidade afirma que as
atividades dos atores políticos regem-se pelo atendimento das normas jurídicas,
com base na lei, cuja finalidade é sempre a preservação do interesse público. O
princípio está voltado a embargar os ilícitos da corrupção provenientes dos
desmandos e dos favoritismos no exercício do poder.
O princípio da impessoalidade prescreve que
todos devem ser tratados sem distinção, em obediência ao republicano princípio
da igualdade. É o que se contrapõe ao clientelismo das nomeações, ao compadrio
do favoritismo da família. Em síntese, as modalidades de corrupção provenientes
da confusão entre o público e o privado, entre a casa e a rua, para lembrar a
formulação de Roberto DaMatta.
Por último, mas de grande relevo para a
eficácia dos demais, o princípio da publicidade. Este parte de um pressuposto
essencial da democracia na passagem do dever do súdito para o direito do
cidadão: o público, por ser comum a todos, deve ser do conhecimento de todos, e
não ser guardado em sigilo por interesses privados.
A transparência, propiciada pela publicidade
e fortalecida pelo respeito à veracidade, está voltada para embargar as
modalidades de corrupção que se escondem para não passar pelo teste da
moralidade oferecida pelo sol da publicidade. A cidadania deve poder saber quem
é um ator político, o que faz e com quem anda. E, sobretudo, deve saber tudo em
relação àqueles que têm o poder de decidir no âmbito dos poderes e detêm as
consequentes competências jurídicas para fazer-se obedecer.
Machado de Assis observa que “a corrupção
escondida vale tanto quanto a pública: a diferença é que não fede”. No momento
atual, os costumes da falta de ética minam a confiança na democracia, enquanto
o mau cheiro da fumaça está asfixiando a cidadania brasileira.
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