Num mesmo dia, nesta semana, dois episódios cheios de coincidências mobilizaram as atenções do noticiário político brasileiro. Ambos envolveram ex-presidentes da República, ex-prefeitos da capital paulista, candidaturas a prefeito em São Paulo e demonstrações claras de preferência por novos nomes na cena política. Também deixaram claro como pode ser custosa a insistência de lideranças políticas desgastadas em forçar seu próprio espaço, a despeito de projetos partidários mais amplos e da necessidade de renovação, pois, ao fazer isto, põem em xeque a continuidade de sua própria influência e do projeto que integram.
Os episódios aos quais me refiro foram a entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à revista "The Economist" e a presença do ex-presidente Lula na solenidade de transmissão dos cargos de ministro da Educação e Ciência e Tecnologia. No primeiro, Fernando Henrique novamente demonstrou o quanto lhe tem apetecido o papel de ex-presidente ativo (que cada vez mais vem assumindo, sobretudo dentro de seu partido) e desferiu uma crítica aberta à postura de José Serra no PSDB, a qual muito tem contribuído muito para a marcha lenta dos tucanos e, consequentemente, sua impotência oposicionista.
Candidato duas vezes derrotado à Presidência da República, Serra não digeriu nada bem a última derrota eleitoral. Como naqueles jogos de futebol em que os ânimos se exaltam durante a partida e, ao final, o time derrotado busca briga ou deixa o campo desferindo acusações, o candidato tucano saiu-se como mau perdedor. De início, não reconheceu publicamente a vitória de sua oponente antes que esta fizesse seu discurso de vitoriosa. Ao seu estilo de fazer o tempo passar, Serra ficou na moita, não deixando à presidenta eleita outra alternativa senão fazer o discurso da vitória sem o prévio reconhecimento protocolar da derrota pelo segundo colocado.
FHC e Lula são capazes de agir como árbitros
Com isto, Serra reservou para si a última palavra no dia da eleição, ocasião na qual cometeu uma segunda deselegância: apresentou-se como candidato presidencial pela terceira vez, mediante o célebre "até breve", desconsiderando a muito mais natural candidatura de Aécio Neves, que nem sequer foi mencionado. Na sua entrevista à "Economist", Fernando Henrique apontou o dedo para o problema, sobretudo ao observar que Serra tenta mimetizar Lula em sua atávica sede pela competição presidencial, apresentando-se insistentemente até que um dia a vitória chegue.
Há, contudo, uma colossal diferença entre as importâncias relativas de Serra para o PSDB e Lula para o PT, mesmo antes de este tornar-se presidente pela primeira vez. Lula, mesmo pertencendo a um partido organizacionalmente muito mais robusto e coletivista do que o de Serra, sempre logrou personificá-lo. Já o tucano é apenas uma liderança de primeira grandeza em sua agremiação, capaz de conduzi-la à letargia e à indecisão, tornando-a refém de seus movimentos. Foi assim na disputa presidencial de 2010; é assim novamente na disputa municipal de 2012. É por isto que no caso de Serra decidir ser candidato a prefeito, toda a energia despendida pelo partido e pelos pré-candidatos até agora terá sido puro desperdício.
Assim, se o primeiro episódio mostra o quanto os caprichos de Serra paralisam o PSDB, o segundo revela o quanto a ascendência de Lula faz o PT se mover. Isto ocorrera na invenção da candidatura Dilma para um partido órfão de nomes após o escândalo do mensalão e se repetiu na disputa paulistana, com o deslocamento de Marta Suplicy e a apresentação do nome de Fernando Haddad. Neste caso, o poder pessoal do ex-presidente contrapôs-se ao controle da máquina partidária, invertendo o equilíbrio da disputa de forma não só a promover uma renovação, mas evitar o risco de uma provável derrota camuflada pelo recall das pesquisas eleitorais e pelo sucesso recente numa eleição majoritária em que não há segundo turno e havia duas vagas em disputa (Marta ficou em segundo lugar).
No caso do PT, todavia, é Marta quem parece mimetizar Serra. Após o malogro de sua pré-candidatura a prefeita, faz-se de rogada no acordo interno que a bancada petista no Senado estabeleceu, de um rodízio na vice-presidência da Casa. É provável que Marta tenha aceitado esse acordo com base na convicção de que seria candidata em São Paulo, mas como sua expectativa frustrou-se, decidiu apegar-se ao cargo como uma compensação por aquilo que lhe foi virtualmente tirado. Ou, simplesmente, percebeu na preservação dessa posição a manutenção de um quinhão de poder que lhe seria útil em futuras disputas políticas. Ressalve-se, contudo, que Marta não é Serra e o PT não é o PSDB. Ou seja, não são negligenciáveis os custos intrapartidários de uma quebra de confiança como esta. A senadora corre o risco de isolar-se na bancada petista e no partido, e o isolamento pessoal numa organização partidária robusta como o PT tende a ser muito pernicioso para quem pretende preservar sua influência.
É bem conhecida a máxima política segundo a qual é necessário, frequentemente, dar um passo atrás para que seja possível dar dois à frente. Certas vezes, a realidade é ainda mais dura do que o provérbio: derrotas que por si mesmas representam um passo atrás obrigam um passo atrás adicional, sem que se possa ter a certeza de que esses serão compensados por passos adicionais à frente, mas essa é a condição para que se possa seguir caminhando. Há momentos em que as lideranças políticas devem decidir se aceitam o recuo para poder seguir em frente, ou se preferem não ceder e lançar-se ao precipício, com frequência levando consigo todo um projeto coletivo.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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