Em sua edição de ontem, o Valor trouxe uma interessantíssima matéria de Cristiane Agostine sobre as relações entre o Partido Republicano Brasileiro (PRB), a Rede Record e a Igreja Universal do Reino de Deus. Se já eram bem conhecidos do público os vínculos estreitos entre a Igreja Universal e a Rede Record, foram desvelados os laços entre ambos e a jovem agremiação partidária (disputou sua primeira eleição em 2006). A informação mais interessante é a assunção de posições de direção no partido por profissionais da Record.
É comum o trânsito de comunicadores para organizações políticas, já que estes se mostram eficazes na obtenção de votos - dada sua popularidade e facilidade para interagir com o eleitorado. Há os típicos comunicadores populares, como o ex-deputado Celso Russomano, que têm um pé em cada organização - a emissora de TV e o partido. Também existem os típicos religiosos midiáticos, como o bispo Antônio Bulhões - há alguns anos pregador televisivo, hoje deputado federal. Se fosse apenas isto, não teríamos nada de muito novo ou chamativo. Contudo, o que se nota no caso do PRB é algo distinto do padrão convencional, pois entre a empresa e o partido transitam também gestores organizacionais.
O partido é nada mais que um tipo de empresa
Além do presidente do partido, Marcos Pereira, ao menos quatro presidentes de diretórios ocuparam cargos de direção na Record. Apesar de, dentre estes, um ser parlamentar (o deputado federal Vitor Paulo), sua condição de dirigentes partidários parece beneficiar-se menos de seu apelo popular do que de sua experiência como gestores empresariais. Ou seja, foram indicados como dirigentes do partido porque já haviam se mostrado bons dirigentes da empresa à qual o partido se vincula, não porque eram bons de voto. Uma dúvida: de qual empresa estamos falando? Da Igreja Universal ou da Record?
A pergunta não é imprópria, pois a forma empresarial de atuação do grupo liderado por Edir Macedo não começou com a rede televisiva, mas com a organização religiosa. Foi o sucesso da empreitada religiosa que permitiu a aquisição e posterior revitalização da então combalida Rede Record. Não se trata de juízo moral sobre o sucesso dos pastores na arrecadação de fundos, como frequentemente se faz. O ponto é outro: o bem sucedido modus operandi de gestão da igreja possibilitou, rapidamente, seu crescimento - é hoje a maior denominação neopentecostal do Brasil, sendo superada, dentre os pentecostais como um todo, apenas pelas bem mais antigas Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil. Tal crescimento representou não só o arrebanhamento de um grande número de fiéis, mas de um volume de recursos que capitalizou depois outras empreitadas, como a Record.
O tino empresarial rapidamente se fez sentir na condução da TV. Poder-se-ia talvez esperar um estilo similar ao seguido pelas emissoras abertas católicas, como a Rede Vida, por exemplo. Esta se dedica quase que integralmente à pregação religiosa, deixando muito pouco espaço na programação para qualquer coisa não diretamente vinculada ao proselitismo eclesiástico; também transmite alguns jogos da segunda divisão do campeonato paulista, mas isto é, sob todos os aspectos, secundário. Mais do que ser um negócio que vise rentabilidade, a emissora católica é um instrumento privilegiado da atuação religiosa. Não é o que sucede na Record. Embora com certeza o espaço dedicado à pregação seja substancial, o grosso da programação não tem tal finalidade. E mais: na medida em que a emissora fortaleceu-se na disputa pela audiência, diminuiu o peso relativo da programação especificamente religiosa, que deu lugar àquilo que desse retorno comercial.
Seria impensável a Rede Vida, ou a Canção Nova, transmitindo um reality show como "A Fazenda", com suas mulheres semidesnudas e o apelo erótico que caracteriza tais atrações. Isto, certamente, não está ali porque ajuda a glorificar a deus, mas porque dá audiência, que atrai anunciantes, que dá lucro. Noutras palavras, é de negócios que se trata e a sua gestão deve primar pela eficiência. A abertura de espaços na programação para atrações religiosas se dá na medida em que esses também têm seu público e o acesso à mídia reforça o proselitismo da igreja - onde tudo começou -, reforçando-a.
Essa lógica da eficácia empresarial chega agora ao partido. Isto não é exatamente novidade na vida dos partidos, tanto que sociólogos políticos do início do século passado, como Max Weber e Robert Michels, já descreviam os partidos como empresas, que buscavam a maior eficiência possível na busca por votos e poder. A relativa novidade aqui está, em parte, para a Igreja Universal - que em vez de apenas lançar candidatos por diversos partidos, cria o seu próprio. E, no caso do Brasil, a novidade está em ser um partido com fortíssimos vínculos orgânicos com uma denominação religiosa particular, ao ponto de ser (embora não admitidamente) sua agremiação oficial. Entre nós, isto foi fenômeno raro. Talvez apenas o antigo Partido Democrata Cristão, de antes da ditadura militar, pudesse reclamar papel similar. E, mesmo no caso dele, era difícil imaginar exclusividade como agremiação da Igreja Católica no Brasil.
É muito provável que a mesma lógica empresarial que norteou a gestão da Rede Record se faça presente na condução do PRB. Assim, o partido dificilmente será um instrumento caudatário dos propósitos religiosos da Igreja Universal, embora certamente não contrariará suas posições fundamentais. Noutros termos, a mesma lógica de rentabilidade que vale para a emissora tende a valer para o partido - não é a toa que os executivos são os mesmos. Assim como sempre haverá um espaço para a Igreja na programação da TV, haverá um espaço para suas demandas na atuação política do partido nos parlamentos, governos e eleições. Contudo, há muito mais do que isto em jogo, o que explica a posição firme da agremiação em favor da candidatura de Dilma Rousseff em meio à guerra religiosa deflagrada pela oposição, que marcou a eleição passada.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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