No fim daquele domingo da chegada do furacão Sandy à costa leste, fomos
dos últimos a embarcar em Nova York, no avião rumo ao Brasil. No aeroporto JFK,
em Nova York, uma chuva leve e ventania consistente prenunciavam a catástrofe
que estava por acontecer, tudo conforme previsto segundo diagnósticos e
advertências continuamente anunciados, mapeados e analisados pelos meios de
comunicação, sobretudo pela TV. Uma sociedade mobilizada, com muita antecedência,
estava (vale enfatizar) solidamente escorada em conhecimentos
científico-tecnológicos e orientada pelas autoridades. O que mais chamava
atenção naquele domingo era a tranquilidade da população, discretamente
mobilizada, enquanto os metrôs eram desativados e vedados, e a sociedade civil
e todos os agentes oficiais (bombeiros , médicos, engenheiros, militares etc)
em processo de articulação planejada. Não havia pânico em Manhattan naquele fim
de domingo.
O furacão, fazendo os primeiros estragos no Sul, avançava em direção à
ilha. Nosso vôo, previsto para 21h45, sairia apenas três horas depois, já na
segunda-feira da catástrofe. Ainda pudemos ver na pista outros quatro aviões
alinhados à frente do nosso, prontos para ousadas decolagens. Ocorreu-me o
título do Marshall Berman, "tudo que é sólido se desmancha no ar"...
Mas não era o caso, pois a notável segurança da equipagem, mais as sequentes
informações tranquilizadoras das autoridades, asseguravam a "normalidade"
do momento. Deixavam claro, entretanto, que depois de certa hora tudo estaria
fechado.
Dentro do imprevisto, dois problemas atrasaram nossa decolagem. A equipe
de comissários estava incompleta pois, dado o trânsito, muitos não conseguiram
chegar ao aeroporto; e, já na pista, a aeronave teve que retornar à base, pois
os faróis da mesma não estavam funcionando bem, informava-nos um muito seguro
comandante. Estávamos bem informados. "Era o que faltava; não vai dar
tempo de decolarmos", pensei. Minha mulher, norte-americana e criada em
uma cultura altamente tecnologizada, estava tranquila, com a certeza de que
haveria pronto reparo, o que de fato logo ocorreu. O furacão se aproximava, e
agora a ventania aumentava. Sereno, nosso comandante dava enfim ordem para
decolagem, rumo ao norte, em direção contrária à do furacão. Um pouco de
turbulência e nada mais. Calma a bordo, as poucas comissárias relaxadas.
Nesse quadro, o que mais chamou minha atenção foi a eficiência do poder
organizado, que estabelece com autoridade e muita informação as estratégias de
prevenção em caso de catástrofe. A cidade foi mapeada, as zonas de maior risco
sinalizadas, os alertas e decisões de evacuação mandatória muito bem dirigidos,
a mobilização integrada de todas as frentes do serviço público e comunitário.
Sim, a comunidade (ou sociedade civil, com suas regras) lá existe mesmo! E o
presidente Obama, o governador Cuomo e sobretudo o prefeito Bloomberg
demonstraram tranquilidade e eficiência.
Enfim, Nova York, que passou pelo sacrifício dos atentados do 11 de
Setembro, revelou-se viva e bem organizada, em que pesem algumas críticas a
eventuais diferenças de tratamento em relação a segmentos sociais mais pobres.
Mas impressiona o funcionamento de um forum permanente da comunidade, com seus
membros eleitos e debates televisionados continuamente, para tratar de questões
de sáude, educação, orçamento, segurança pública, etc.
Nessas situações críticas, são postas em evidência as qualidades dos
dirigentes. Momento em que se revelam os estadistas, bem como os oportunistas
despreparados. Não apenas o competente governador Cuomo, mas sobretudo o
prefeito Michael Bloomberg, um homem muito bem formado e estudado, algo
distante dos partidos políticos e nada populista. Bloomberg, desde muito antes
dos dias 29 e 30 de outubro, vinha sinalizando os problemas a serem enfrentados
nessa conjuntura pela coletividade e pelo Estado. Em longas e detalhadas
análises, falando sem teleprompter nem rodeios, não deixou um só momento de
governar, no sentido pleno deste verbo pouco conhecido entre nós.
Governar, eis o verbo! Na TV, com sua equipe de segurança composta de
bombeiros, médicos e outros profissionais (todos expressando-se bem), deixou
claro que havia alguém firme, decidido e bem informado no comando da cidade.
Certamente o exemplo de Nova York, com seus estadistas, pode servir de
referência para nossos novos dirigentes, bem como para nossa desidratada
sociedade civil, que vê nos EUA apenas os aspectos superficiais, mercantis,
culinários e tecnológicos e se abarrota de utensílios, brinquedos e vestuários
chiques, de modo geral made in China.
Além de uma sociedade civil organizada, o que nos falta são estadistas
com "e" maiúsculo. Ou seja, dirigentes que não pensem apenas na Copa,
no futebol e numa "boquinha" no Estado, mas sobretudo na educação
civil, cidadã, responsável. "Dirigentes", nos EUA, é um termo que se
aplica sobretudo para definir a boa governança pública; neste nosso Brasil
brasileiro, serve para designar os cartolas de times de futebol. Hora de mudar
isto que é mais difícil de mudar: a mentalidade coletiva. Já é tempo!
Carlos Guilherme Mota é historiador
Fonte: O Estado de S. Paulo
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