sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Nem tudo que é sólido se desmancha no ar - Carlos Guilherme Mota

No fim daquele domingo da chegada do furacão Sandy à costa leste, fomos dos últimos a embarcar em Nova York, no avião rumo ao Brasil. No aeroporto JFK, em Nova York, uma chuva leve e ventania consistente prenunciavam a catástrofe que estava por acontecer, tudo conforme previsto segundo diagnósticos e advertências continuamente anunciados, mapeados e analisados pelos meios de comunicação, sobretudo pela TV. Uma sociedade mobilizada, com muita antecedência, estava (vale enfatizar) solidamente escorada em conhecimentos científico-tecnológicos e orientada pelas autoridades. O que mais chamava atenção naquele domingo era a tranquilidade da população, discretamente mobilizada, enquanto os metrôs eram desativados e vedados, e a sociedade civil e todos os agentes oficiais (bombeiros , médicos, engenheiros, militares etc) em processo de articulação planejada. Não havia pânico em Manhattan naquele fim de domingo.

O furacão, fazendo os primeiros estragos no Sul, avançava em direção à ilha. Nosso vôo, previsto para 21h45, sairia apenas três horas depois, já na segunda-feira da catástrofe. Ainda pudemos ver na pista outros quatro aviões alinhados à frente do nosso, prontos para ousadas decolagens. Ocorreu-me o título do Marshall Berman, "tudo que é sólido se desmancha no ar"... Mas não era o caso, pois a notável segurança da equipagem, mais as sequentes informações tranquilizadoras das autoridades, asseguravam a "normalidade" do momento. Deixavam claro, entretanto, que depois de certa hora tudo estaria fechado.

Dentro do imprevisto, dois problemas atrasaram nossa decolagem. A equipe de comissários estava incompleta pois, dado o trânsito, muitos não conseguiram chegar ao aeroporto; e, já na pista, a aeronave teve que retornar à base, pois os faróis da mesma não estavam funcionando bem, informava-nos um muito seguro comandante. Estávamos bem informados. "Era o que faltava; não vai dar tempo de decolarmos", pensei. Minha mulher, norte-americana e criada em uma cultura altamente tecnologizada, estava tranquila, com a certeza de que haveria pronto reparo, o que de fato logo ocorreu. O furacão se aproximava, e agora a ventania aumentava. Sereno, nosso comandante dava enfim ordem para decolagem, rumo ao norte, em direção contrária à do furacão. Um pouco de turbulência e nada mais. Calma a bordo, as poucas comissárias relaxadas.

Nesse quadro, o que mais chamou minha atenção foi a eficiência do poder organizado, que estabelece com autoridade e muita informação as estratégias de prevenção em caso de catástrofe. A cidade foi mapeada, as zonas de maior risco sinalizadas, os alertas e decisões de evacuação mandatória muito bem dirigidos, a mobilização integrada de todas as frentes do serviço público e comunitário. Sim, a comunidade (ou sociedade civil, com suas regras) lá existe mesmo! E o presidente Obama, o governador Cuomo e sobretudo o prefeito Bloomberg demonstraram tranquilidade e eficiência.

Enfim, Nova York, que passou pelo sacrifício dos atentados do 11 de Setembro, revelou-se viva e bem organizada, em que pesem algumas críticas a eventuais diferenças de tratamento em relação a segmentos sociais mais pobres. Mas impressiona o funcionamento de um forum permanente da comunidade, com seus membros eleitos e debates televisionados continuamente, para tratar de questões de sáude, educação, orçamento, segurança pública, etc.

Nessas situações críticas, são postas em evidência as qualidades dos dirigentes. Momento em que se revelam os estadistas, bem como os oportunistas despreparados. Não apenas o competente governador Cuomo, mas sobretudo o prefeito Michael Bloomberg, um homem muito bem formado e estudado, algo distante dos partidos políticos e nada populista. Bloomberg, desde muito antes dos dias 29 e 30 de outubro, vinha sinalizando os problemas a serem enfrentados nessa conjuntura pela coletividade e pelo Estado. Em longas e detalhadas análises, falando sem teleprompter nem rodeios, não deixou um só momento de governar, no sentido pleno deste verbo pouco conhecido entre nós.

Governar, eis o verbo! Na TV, com sua equipe de segurança composta de bombeiros, médicos e outros profissionais (todos expressando-se bem), deixou claro que havia alguém firme, decidido e bem informado no comando da cidade.

Certamente o exemplo de Nova York, com seus estadistas, pode servir de referência para nossos novos dirigentes, bem como para nossa desidratada sociedade civil, que vê nos EUA apenas os aspectos superficiais, mercantis, culinários e tecnológicos e se abarrota de utensílios, brinquedos e vestuários chiques, de modo geral made in China.

Além de uma sociedade civil organizada, o que nos falta são estadistas com "e" maiúsculo. Ou seja, dirigentes que não pensem apenas na Copa, no futebol e numa "boquinha" no Estado, mas sobretudo na educação civil, cidadã, responsável. "Dirigentes", nos EUA, é um termo que se aplica sobretudo para definir a boa governança pública; neste nosso Brasil brasileiro, serve para designar os cartolas de times de futebol. Hora de mudar isto que é mais difícil de mudar: a mentalidade coletiva. Já é tempo!

Carlos Guilherme Mota é historiador

Fonte: O Estado de S. Paulo

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