Ex-presidente tira do armário centenas de fitas
Durante seus oito anos na Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso manteve uma rotina secreta, de que só os muito próximos sabiam: ele fazia gravações diárias, ou quase diárias, no fim do expediente, sobre o que tinha dito, ouvido, pensado e decidido naquelas 10 ou 12 horas.
Dez anos depois de descer a rampa do Planalto, o segredo veio à tona. Numa recente entrevista ao médico Dráuzio Varela, ele falou da sua vasta coleção de fitas e avisou que ela está sendo degravada e organizada por uma colaboradora.
“Deve dar umas dez mil páginas ou mais”, calcula FHC. São centenas de fitas - só uma fase inicial já tinha cerca de 200 - que podem resultar, quem sabe, no grande livro de memórias da Era FHC. “Ainda não decidi o que fazer com os registros”, avisou o ex-presidente numa conversa com o Estado. Enquanto ele se decide, um passo adiante já foi dado: sua “eterna” colaboradora, a socióloga Danielle Ardaillon - que o segue e organiza seus papéis desde os anos 70, quando os dois trabalhavam no Gebrap - está debruçada em cima desse “diário do poder”, coordenando sua transcrição e organização.
O que contêm essas fitas? “A maior parte das gravações de 1995 refere-se a temas políticos”, esclarece o ex-presidente. Ele já leu a degravação desse primeiro ano de poder “para corrigir nomes próprios, cortar repetições e mostrar modificações para o caso de edições futuras”. Foi um período, como se sabe, em que ele se ocupou do Plano Real, da “pauleira” das privatizações e das primeiras reformas, da administração e da Previdência. Mas, cauteloso, ele adverte: por enquanto, “não há seleção de trechos nem foi feito qualquer trabalho editorial”.
É um baú de memórias construído com método. Ele mesmo detalha: “Quando não gravava no mesmo dia, eu fazia referências ao que acontecera nos dias anteriores. Há, obviamente, referências a pessoas e situações, mas raramente a assuntos pessoais. Eu gravava sempre no Alvorada ou em viagem, geralmente ao final do dia. Jamais contei com a ajuda de terceiros”.
Histórico. Registros diretos do poder, logicamente, não são nenhuma novidade. O século 20 quase inteiro desfila em quilômetros de filmes e discursos, públicos e confidenciais, sobre grandes guerras ou pequenas homenagens. Muitas vezes, esse material contribui para esclarecer e até mudar a história.
Nos EUA, o presidente John Kennedy instalou um sistema secreto de gravação sua sala e, entre suas gravações, há uma conversa com o embaixador no Brasil no início dos anos 60, Lincoln Gordon. Os dois discutiam como lidar com o governo João Goulart - um indício do envolvimento americano em sua queda. Nos anos 1970, conversas gravadas de Richard Nixon, que ele fez de tudo para esconder, ajudaram a tirá-lo do poder, no caso Watergate.
O que FHC fez é diferente: são depoimentos informais, no calor da hora, sobre o minuto a minuto do poder. História feita com pequenas peças do varejo, espontâneas, esclarecedoras.
O ex-presidente avisa que não tem planos de publicar nada agora “e talvez nem faça qualquer publicação em vida”. Mas, como lembrou ao Estado, “as gravações originais e suas transcrições ficarão disponíveis para que os cortes e correções possam ser cotejados”. Sinal de que ele não tem pressa - mas a História também não tem. E de que, em algum momento, o seu “diário do Planalto” virá a público.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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