No embate entre o monarca e o profeta, entre o poder e o Espírito, o papado de Francisco pode sinalizar essa radical necessidade do homem contemporâneo de encontrar-se consigo mesmo
Acostumados com papas geograficamente distantes, mais figuras míticas do que figuras de carne e osso, a eleição de um papa argentino põe os católicos brasileiros em face de uma proximidade perturbadora. O cardeal Jorge Mario Bergoglio, eleito com o nome profético de Francisco, é figura central da Igreja Católica da Argentina. Uma Igreja que tem débitos graves com a opinião política e a consciência de seu país pela falta de clareza no seu relacionamento com a ditadura militar, com as prisões, a tortura, os desaparecimentos e mortes até mesmo de religiosos. Uma Igreja de história oposta à da Igreja Católica no Brasil, que não raro abrigou os perseguidos e falou firmemente em nome das vítimas. Igreja que defendeu os índios contra a onda genocida na ocupação da Amazônia, em nome de sua condição humana e de sua diferença antropológica. Igreja que abrigou a causa dos posseiros e dos trabalhadores rurais, alcançados pela onda de desenraizamentos e miséria decorrentes de uma política fundiária perversa. Verso e reverso, a Igreja de lá e a Igreja de cá.
Lá não havia separação entre o Estado e a Igreja, o catolicismo foi religião oficial do Estado até a nova Constituição de 1994. Ao ser economicamente mantida pelo Estado, a Igreja argentina teve seu clero convertido em corpo de funcionários públicos disfarçados. Uma Igreja mutilada e cerceada na vocação profética. Aqui, a República teve a lucidez política de separar o Estado da Igreja.
Provavelmente, Francisco carregará nos ombros o fardo imenso da falta de clareza de suas ações e omissões durante os anos medonhos da ditadura militar argentina. Mas carregará, também, o belo sentido evangélico da dura repreensão pública que dirigiu aos párocos que se recusam a batizar os bebês extramatrimoniais, os filhos de mães solteiras. Além da crítica aberta ao neoliberalismo e seus devastadores efeitos sociais.
É inútil um acerto de contas com a história pessoal de um homem que morreu ao fim do conclave para renascer com outro nome na "loggia" da Basílica de São Pedro no começo da noite escura e chuvosa do dia 13 de março e para enfrentar o silêncio da multidão surpreendida pelo inesperado. Porque os papas não nascem papas. É nesses desencontros que se dá o chamamento, é por eles que o Espírito se manifesta, como certeza na contradição. A circunstância, o momento e até o acaso os elegem. Vi, na casa camponesa e pobre em que nascera Angelo Giuseppe Roncali, em Sotto-il-Monte, Bérgamo, Itália, o bilhete ferroviário de volta do Cardeal Patriarca de Veneza, que fora a Roma eleger o sucessor do gélido Pio XII. Descobriu na Capela Sistina que sua viagem era só de ida. Ficou em Roma como papa João XXIII e ali está sepultado como beato. O cardeal Albino Luciani, quando assomou ao balcão, minutos após sua inesperada eleição como João Paulo I, disse assustado: "tive medo". Não fora para ficar.
Francisco é o que será e não apenas o que foi. A circunstância lhe abrirá o caminho desse renascimento. Cada papa se realiza em seu percurso, que é muito mais o da circunstância da História do que o da pessoa. De qualquer modo, leva consigo a herança de uma biografia que o ilumina ou persegue em sua nova identidade. Bergoglio é um cardeal de trajetória diferente: nascido e criado em cortiço, filho de ferroviário, estudou química antes da opção sacerdotal, namorou uma vizinha, lê Dostoiévski, faz sua própria comida, desloca-se em transporte público e esteve do lado errado durante a ditadura. Enfim, tem seus defeitos, o que deve ajudá-lo no destino que o surpreendeu, o de pastor do reencontro da Igreja com sua missão profética.
A adoção do nome do pobre de Assis é coerente com seu modo de vida franciscano. Sugere um retorno ao franciscanismo, à opção pelos pobres. No gesto promissor de inclinar a cabeça e pedir que o povo da praça orasse por ele, para que fosse abençoado, compartilhou a função sacerdotal com os fiéis antes de abençoá-los. Indica, assim, sua concepção do sagrado, que pode mudar muita coisa.
Essas reorientações não são escolhas apenas suas. Quando do terremoto de Aquila, Bento XVI ali esteve e foi rezar no túmulo de Celestino V, o papa eremita e pobre que renunciara, escandalizado com os abusos na Igreja, e ali depositou o pálio papal. Uma antecipação fortemente simbólica de sua própria renúncia. Na escolha do Sacro Colégio, é possível ver uma inquietação. No embate entre o monarca e o profeta, entre o poder e o Espírito, aparentemente estamos vivendo mais um episódio histórico do reencontro da Igreja com o sagrado.
O sagrado tem se revelado uma necessidade radical da sociedade contemporânea, sobretudo dos jovens, um atenuante para a brutalidade de um cotidiano demarcado pela anomia e pela alienação. É no espaço do sagrado que, historicamente, o homem tem se encontrado consigo mesmo. Despedaçado e aniquilado pelas irracionalidades e pela materialidade econômica da vida moderna, busca, conservadoramente, no sagrado a inteireza de um renascimento.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor, entre outros livros, de , A Sociedade Vista do Abismo (VOZES)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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