Para os incrédulos: a carta da presidente Dilma Rousseff ao Congresso Nacional, em que encaminhou ontem à votação de senadores e deputados o plebiscito para a reforma política que deseja ao país diz, nas primeiras frases da justificativa, que os milhões de brasileiras e brasileiros que saíram às ruas estavam reivindicando.... "mudanças no sistema de representação política". O desafio é encontrar alguém, além da presidente e seus assessores que redigiram a nova obra, que tenha visto essa faixa, cartaz ou grito do contribuinte-eleitor manifestante.
Como se não bastasse transferir ao Congresso Nacional toda a responsabilidade pela insatisfação da população com desmandos e ineficiência na gestão do governo, a presidente impõe às ruas um plebiscito sobre assunto não prioritário na agenda de nenhum grupo, contra o qual ninguém pode ficar, vez que o desejo de opinar sobre qualquer coisa é universal. Enquanto os leões se distraem, a presidente ganha tempo e firma o discurso com que criará as condições de retomada da campanha da reeleição, interrompida em pleno voo pelo clamor do eleitorado.
Ainda por cima, a reforma política para a qual a presidente pede plebiscito é a que o PT sempre quis mas não conseguiu fazer no Congresso Nacional, é a que o ex-presidente Lula queria, a que presidente e líderes do partido tentam impor pela insistência. Também, os cinco temas relacionados dizem respeito só ao Parlamento, nenhum ao Executivo. A reeleição do chefe do governo federal, estadual ou municipal, por exemplo, passou longe do que a presidente considerou prioritário abordar agora. Na sua reforma político-partidária-eleitoral, Dilma tenta resolver o que sobrou da agenda do PT sobre a questão, uma vez que, desde Lula, o desejo era que fosse tarefa para a Constituinte exclusiva, natimorta desta vez.
A reforma política e esse plebiscito equivalem, para as manifestações que acordaram o país, o que a CPI do Cachoeira, também uma invenção do PT estimulada pelo ex-presidente, foi para o julgamento do mensalão: manobra diversionista, maneira de interferir no outro poder, vingar-se dos que considera algozes e cumprir as prioridades do partido. A plateia se distrai e tenta esquecer a carnificina que se desenrola na cena principal. O que lhe foi dado faz muito barulho.
Para completar a agenda política em resposta às ruas, aquela que vem sendo reiterada por Rui Falcão, o presidente do seu partido, e não a da sociedade, só faltou aos conselheiros da presidente, senão a ela mesma, incluírem o controle da mídia no plebiscito. Teriam levado, pois o povo quer votar, escolher, opinar, mudar.
Senso de oportunidade que não faltou, por exemplo, ao líder do PT na Câmara, José Guimarães, que tão logo viu tombar a Constituinte exclusiva, sacou outra ideia do ex-presidente para incluir na roda, um projeto para enquadrar a corrupção como crime hediondo. Mas o Congresso já tinha aprovado, na semana em que votou, à deriva, questões que imaginou atenderem aos reclamos dos manifestantes. Guimarães - aquele mesmo do assessor apanhado com dólares na cueca - ficou no vácuo.
Outros petistas lembraram do também popular projeto de taxação de grandes fortunas. A Constituinte exclusiva foi eliminada logo, mas foi a primeira do arsenal habitual do PT a entrar em cena.
Algo a ver com o que se viu nas ruas? Nada.
A corrupção que sufoca o grito do eleitorado pode ser resolvida dentro do sistema político que está aí, inclusive com superação da impunidade histórica, e está nas mãos do governo resolvê-la. A melhoria dos serviços públicos em geral, na segurança, na educação, na saúde e no transporte público, é da alçada do governo. Por que não um plebiscito para resolver a gestão dos hospitais e emergências do Brasil?
São questões dos Executivos as que incomodam os caminhoneiros que bloqueiam estradas, os portuários que discutem paralisações, e outros tantos jovens que não pretendem mais sair das ruas.
Uma providência que lhe diz respeito a presidente informou que tomará: dará mais R$ 50 bilhões para projetos de mobilidade urbana. Que, de resto, já tem uma reserva de verbas enorme, que ninguém foi buscar. E cuja administração está no Ministério das Cidades, em mãos do PP de... ele mesmo, Paulo Maluf.
A sociedade transbordou com o desgoverno, com as injustiças, com os desvios, com a incompetência para gerir o dinheiro público. Cada segmento, cada pessoa, pode-se dizer, hoje, no Brasil, tem seu cartaz de protesto bem definido. Mas são problemas complexos, não se resolvem com um gesto de mágica como o do plebiscito.
O Congresso, mais uma vez agredido pelo Executivo, que lhe jogou na cara todas as gotas d"água que entornaram a paciência do cidadão, também não foi feliz nas primeiras providências para atender aos reclamos dos insatisfeitos. Não fez, ainda, sua parte, tomou falsas providências, de resultados que, se vierem, estão a perder de vista. A desfaçatez maior do momento do Congresso com seu eleitorado não foi sequer motivo de constrangimento para deputados e senadores.
A presença do deputado Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos, conduzindo votações e impondo regras absurdas, como o projeto da cura gay, um escárnio que o Parlamento pode resolver e não precisa nem de plebiscito. Se não detiver a insensatez do parlamentar, com suas provocações e capacidade de transgredir o bom senso, ainda vai acontecer uma tragédia naquela geografia, que usa em causa própria.
O plebiscito e a reforma política não resolvem o Feliciano, não compram maca de pronto-socorro, não pagam bem a professora, não abrem vaga em creche, não corrigem o fator previdenciário, não rompem com a impunidade, não cassam mensaleiros condenados, não prendem Waldomiros e Erenices, nem mudam pareceres de Roses. Não racionalizam os circuitos urbanos, não subsidiam tarifas, não invertem a lógica atual de privilégios aos ricos. São primos-irmãos do pacto. Nada resolvem mas fazem um movimento de dar vertigem.
Fonte: Valor Econômico
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