Fundador do PT e um dos mais simbólicos parlamentares do Congresso, o deputado Domingos Dutra, do Maranhão, anuncia que vai deixar o partido.
Robson Bonin
O PT foi engolido pelo sistema
Desde que trocou o quilombo de Saco das Almas, onde nasceu, pelo Congresso Nacional, em Brasília, o deputado Domingos Dutra, do PT do Maranhão, alimentava um sonho: pôr um ponto-final na histórica supremacia da família Sarney, que há décadas comanda a política no estado. Dez anos atrás, quando finalmente seu partido chegou ao poder, o parlamentar passou a enfrentar o dilema da realidade. Fundador e militante histórico do PT. Dutra, graças à política de alianças firmadas pelo ex-presidente Lula, se viu transformado de adversário a parceiro formal do PMDB de Sarney. O deputado jamais aceitou essa condição. Os dois mandatos de Lula e os dois anos e meio de Dilma Rousseff, porém, não só consolidaram a aliança com Sarney como também subordinaram o PT maranhense ao comando e aos interesses dos peemedebistas. Na semana passada, a realidade finalmente se impôs em sua plenitude: Dutra jogou a toalha e resolveu anunciar sua desfiliação do PT. "É falta de honestidade política da minha parte ficar num partido dominado pelos Sarney", explica.
A decisão do deputado maranhense diz muito sobre o que era e o que se tornou o PT ao longo do seu processo de ascensão ao poder. Aos 57 anos, Dutra é o retrato de uma face esquecida do petismo. Fiel às bandeiras históricas — a defesa de causas ligadas aos direitos humanos, aos negros, índios e quilombolas — o deputado é do tempo em que os petistas pregavam a ética na política e saíam à rua para vender broches e camisetas para manter a independência partidária e sustentar a luta por mudanças no sistema político. Dutra fundou o PT no Maranhão no mesmo dia em que o partido foi criado em nível nacional. Na semana passada, ao lembrar desse detalhe, ele chorou enquanto repisava seus 33 anos de militância. Sentado em uma poltrona do gabinete, com os pés descalços — ele usa sandálias de tiras de couro, o jeito simples que marca sua atuação na Câmara — desabafou: "Vou sair com dor no coração. Ninguém deixa uma história assim. Mas saio por coerência com aquilo que o PT sempre se propôs, que foi emancipar os mais pobres".
Amigo de Lula, com quem conviveu desde os primeiros dias de PT — ele guarda até hoje fotos antigas como a que ilustra esta página —. Dutra não perdoa ao ex-presidente por ter transformado o partido naquilo que o PT nasceu para combater. "O Lula e o Zé Dirceu cansaram de comer camarão seco e ovo com farinha lá no Maranhão comigo. Em 1994, ele fez a caravana da cidadania. Eu era presidente do PT no estado. Cortamos o Maranhão todo de ônibus de linha, dormindo em casa de militante. Eu vi o Lula esculhambar o Sarney em praça pública", indigna-se. "Ele teve a chance única de limpar esse mundo político, mas não quis. Os 300 picaretas que ele denunciou continuam no mesmo lugar no Congresso", completa.
É a lembrança dos tempos de dificuldade e de luta contra o sistema vigente que magoa o deputado. Filho de uma quebradeira de coco e um lavrador, Dutra não enriqueceu na política e jamais deixou o Maranhão. Por isso ressalta que é doloroso ver toda a soberba — os jantares, os vinhos caros, os restaurantes e o dinheiro abundante — dos companheiros de Brasília. "Continuo comendo camarão seco e ovo cozido com pinga até hoje. Eu não bebo uísque", diz. O maranhense é um dos poucos petistas que consideram justo o julgamento do mensalão. "É triste ver companheiros nossos condenados por corrupção, mas o PT se perdeu e foi engolido pelo sistema."
Inconformado com o distanciamento ideológico do partido de sua origem, e sem espaço no PT para lutar contra o domínio da família Sarney, Dutra passou a ajudar a construir a Rede Sustentabilidade, da ex-senadora e também ex-militante petista Marina Silva. Ele estuda se candidatar no próximo ano pela nova legenda.
Por que o senhor vai sair do PT?
Isso vem desde a minha greve de fome em 2010, quando o diretório nacional obrigou o PT do Maranhão a se coligar com os Sarney. No dia da intervenção, o Manuel da Conceição, um dos fundadores do PT, tentou falar três vezes na reunião, mas o José Genoino e o José Dirceu não deixaram. Ele veio ao plenário da Câmara e entrou em greve de fome comigo. Agora, já estamos chegando a 2014 e continua essa relação promíscua. Recentemente, um militante nosso usou dez segundos de uma inserção na TV para dizer que o Maranhão é atrasado. A fala saiu do ar porque o Sarney mandou o Rui Falcão tirar. Saio por coerência com aquilo que o PT se propôs, que foi emancipar os mais pobres.
Qual a razão para essa mudança de foco?
Essa é uma conta que deve ser debitada ao presidente Lula. Não consigo entender a dívida que o governo e o PT têm com o senador José Sarney e sua família. 0 único estado que continua em situação de miséria e corrupção absoluta é o Maranhão. Se tem alguém que é responsável por isso, esse alguém é o Lula. Ele sustenta essa oligarquia.
O senhor disse que é militante e amigo pessoal de Lula desde a década de 80.
O Lula teve a chance única de limpar esse mundo político, mas não quis. Os 300 picaretas que ele denunciou continuam no mesmo lugar no Congresso - e o pior é que muitos agora são nossos aliados. Achei muito simbólico o Sarney, que não larga quem está no poder, deixar a Dilma no dia da posse dela e ir levar o Lula a São Bernardo do Campo. Há uma intimidade muito grande entre os dois. Eu gostaria que o presidente Lula fosse um embaixador dos índios, dos negros, dos quilombolas, e não um intermediário de gente como Sarney e Eike Batista.
Como o senhor definiria hoje o Partido dos Trabalhadores?
A história do PT sempre foi feita com a ideologia dos seus militantes. Em 1982, fui candidato a vereador em São Luís só para divulgar o PT. Na primeira campanha do Lula, todo mundo vendia camiseta, fazia bingo, pedia contribuição individual em festa para arrecadar dinheiro. Eu fiz muita feijoada e vendi muita rifa no Maranhão para construir o partido. O PT se perdeu. Foi engolido pelo sistema.
O senhor se refere ao mensalão?
Embora tenha a clareza de que houve muitas mudanças positivas nestes dez anos, deu no que deu: o mensalão e toda essa gente condenada. Lamento muito o mensalão.
É uma tristeza ver companheiros da gente condenados por corrupção. Eles tiveram os melhores e mais caros advogados, ampla defesa, e foram condenados em um julgamento longo e transparente no Supremo.
Fonte: Revista Veja
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