As portas de 2013 se fecham sob a promessa do presidente da Câmara, deputado Henrique Alves, de abrir, mais uma vez, as sublinhadas e desgastadas páginas do livro da reforma política. Depois de recorrentes tentativas, ao longo das últimas décadas, para pôr um fim ao conservadorismo ortodoxo que inspira a vida pública e explica a razão pela qual a política deixou de ser missão para ser profissão, acreditar que as práticas nessa frente possam mudar é a confissão de fé de que Deus, ufa, decidiu tirar férias por aqui e ajudar o País a pavimentar o terreno da razão.
Deixando de lado os insondáveis desígnios do Senhor, é possível apostar uma quantia, mesmo mínima, na megassena política de 2014, tendo como base as derrotas em série que marcam a atividade política em matéria de reforma de costumes. A lei das probabilidades acolhe a hipótese de que ganhos são possíveis após sucessivas derrotas. Ademais, temas que outrora seria inimaginável que passassem pelo crivo de quadros fundamentalmente preocupados com a preservação de seu poder começam a ser palatáveis, como é o caso do voto facultativo. O surgimento de novos polos de poder na sociedade, a partir da multiplicação de entidades de intermediação social, reforça a necessidade de acabar com a obrigatoriedade de votar.
O voto facultativo tende a ser a chave-mestra para abrir as portas da mudança política. Vamos às razões.
Primeiro, a constatação de que a sociedade, há bom tempo, demonstra querer participar de forma ativa do processo político. A degradação geral dos serviços públicos, as crescentes pressões urbanas, o distanciamento entre a esfera política e as bases eleitorais, a pequena margem de manobra do corpo parlamentar para atender a demandas das comunidades, enfim, as promessas tão repetidas e nunca plenamente realizadas pela representação política compõem a argamassa da insatisfação social. Grupos, setores e categorias organizam-se em torno de suas entidades, formando um gigantesco rolo compressor a fazer pressão contra a representação centrífuga do poder. Estabelece-se, assim, o nexo entre cidadania ativa (mobilização social) e voto. Insatisfeitos com mandatários que foram sufragados nas urnas, contingentes tendem a buscar uma representação comprometida com suas demandas e próxima aos interesses locais/regionais. O poder econômico, claro, continuará a realizar manobras táticas (e escusas) para cooptar bolsões, mas essa prática será cada vez mais atenuada pelo adensamento das correntes racionais.
Neste ponto é oportuno lembrar os motivos que inspiram as escolhas. Para as classes que habitam os fundões e as margens sociais o apelo é o do bolso, na esteira da equação BO+BA+CO+CA=bolso cheio, barriga satisfeita (geladeira recheada), coração agradecido, cabeça decidindo retribuir a recompensa. Ora, mesmo nesses amplos espaços a inquietação e o clamor por melhoria dos serviços públicos (saúde, educação, segurança) dão sinais de exacerbação. Imagine-se tal onda de tensão num ano esportivo e eleitoral como será 2014.
O segundo apelo é o da proximidade. Os eleitores são induzidos a escolher representantes próximos aos seus ambientes físico e social, identificando perfis mais confiáveis, aptos a cuidar de seus interesses e mais controláveis. Esse fator aponta para um voto consciente. O voto facultativo, sob esse prisma, não arrefecerá o ânimo das bases. Ao contrário. Ainda na planilha de fatores que cercam o processo decisório, contabiliza-se a indicação feita por grupos de referência do eleitor - familiares, vizinhos, companheiros de trabalho, lideranças do bairro, etc. A onda de críticas, exigências e participação terá, nesse núcleo, mais um reforço. E por último, o próprio perfil do candidato estará sob a mira eleitoral, deixando escancarar a hipótese de que fica cada vez mais difícil vender gato por lebre.
Essa radiografia se completa com um pano de fundo que exibirá a linguagem da assepsia: políticos ficha-limpa; história de um passado limpo e vida decente; respeito, dignidade, ética e moral; combate à corrupção; Ministério Público e juízes de tribunais eleitorais com lupas potentes; sentimento de que a justiça está chegando para todos, fracos e poderosos; maior transparência. O voto facultativo torna-se adereço importante nessa fotografia. A soma de todo esse aparato indica expansão da racionalidade, conceito que ampara o voto qualificado e livre.
O eleitor irá às urnas com o sentimento de que votar ou deixar de votar constituem atos de consciência cívica. Há 20, 30 anos a modelagem do voto obrigatório fazia-se necessária sob o argumento de que a melhoria da representação implicava aprendizagem (votar sempre), sendo os eventos eleitorais de dois em dois anos com voto compulsório o mecanismo ideal para a democracia. A experiência até valeu. Mas os costumes políticos não acompanharam a dinâmica social. Daí a necessidade de alterar o calibre eleitoral. Hoje já se pode garantir que o eleitor brasileiro desenvolveu um sentido agudo e sutil e quer exercitar seu direito, votando ou mesmo deixando de votar. Sem amarras e injunções.
E se as urnas exibirem um grande vazio, com uma enxurrada de votos nulos e em branco? Ora, a conta negativa também pode ser debitada no crédito da racionalidade política. Protestar contra o status quo, fincar pé no terreno da contrariedade, deixar as urnas vazias constituem atos consonantes com nosso estágio civilizatório. O voto facultativo deverá ser testado. Haverá oportunistas? Sim. Figuras e figurões poderão usar a arma do bolso para convencer eleitores do fundão do País. E, dessa forma, plasmar um voto "falcatruativo". Não terão a comodidade d'outrora. A interpretação lamurienta do memorável coronel pernambucano Chico Heráclito sobre a cabeça do votante se alastra pelo País: "O eleitor do Recife é muito a favor do contra". Esse eleitor contrário se espalha pela Nação.
*Jornalista, professor titular da USP,
Fonte: O Estado de S. Paulo
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