Os eventos do último mês na Ucrânia - uma onda de protestos contra a decisão do governo ucraniano de não assinar um acordo de associação e livre-comércio com a União Européia (UE) - compõem mais um capítulo da disputa entre a Rússia e a Europa, por poder e influência, naquela região do mundo.
A Cortina de Ferro tomou-se parte do entulho da guerra fria. Mas continua distante - se é que chegará - o dia em que a Rússia e os países europeus formarão uma "irmandade", sem prejuízo de suas "esplêndidas diferenças", como vaticinou Vitor Hugo no século 19. Quando a União Soviética se desfez em pedaços no final do século 20, o vaticínio do romancista francês pareceu plausível. A primeira década do século 21, porém, mostrou que o gigante eslavo não seria docemente europeizado.
Nesse período assistimos a dois movimentos simultâneos. De um lado, a UE caminhando em direção às vizinhanças da ex-União Soviética. De outro, a Rússia, sob o comando de Vladimir Putin, recuperando meios econômicos e disposição política para manter sob sua órbita ao menos parte do que sobrara do império soviético.
Até mergulhar em crise em 2008, a União Européia levou a melhor nessa disputa. Entre 2004 e 2007 incorporou como membros os países satélites da União Soviética na antiga Europa Oriental (Polônia, Hungria, etc.) e três ex-Repúblicas soviéticas do Mar Báltico (Lituânia, Estônia e Letônia).
Com a crise do euro, a UE perdeu o ímpeto para incorporar novos membros. Ainda assim, em 2009 lançou uma nova iniciativa a leste. A Eastem Partnership não visa a incorporar novos membros, mas a firmar acordos de cooperação e livre-comércio com países que se espremem entre os fundos da Europa e a frente da Rússia (Ucrânia, Bielo-Rússia e Moldávia), além de três países do Cáucaso (Geórgia, Armênia e o Azerbaijão).
Com uma população e um PIB várias vezes maiores que os demais, a Ucrânia é, de longe, o mais relevante desses seis países. Além da importância econômica, é politicamente estratégica: abriga a principal base naval russa no Mar Negro e serve de passagem para a maior parte dos gasodutos que abastecessem a Europa com energia: proveniente da Rússia.
A despeito das pressões russas em contrário, as negociações da UE com a Ucrânia avançaram ao longo dos últimos quatro anos (com a pequena Geórgia e a ainda menor Moldávia também). Passo decisivo para a assinatura dos acordos estava previsto para os dias 28 e 29 de novembro último, no terceiro encontro de cúpula da Eastem: Partnership. Geórgia e Moldávia confirmaram as expectativas. Já a Ucrânia deu marcha à ré, apesar dos apelos de última hora dos líderes europeus, desencadeando a onda de protestos em Kiev.
Moscou não tem poupado esforços para manter as ex-Repúblicas soviéticas girando em sua órbita. Já tendo perdido três delas, teme que outras se desgarrem pela via dos acordos de cooperação e livre-comércio e receia a influência islâmica nas ex-Repúblicas da Ásia Central (Casaquistão, Usbequistão, etc.), porque o islamismo penetra no território russo, especialmente na Chechênia.
Nos últimos anos a Ucrânia experimentou quase todas as formas de coação, em especial relacionadas à quantidade e ao preço do gás fornecido pela Rússia, o principal parceiro comercial do país (70% do gás consumido na Ucrânia provém da Rússia). Nos meses mais recentes a pressão se intensificou. Os russos bloquearam a entrada de exportações ucranianas (30% delas têm como destino a Rússia) e mostraram-se inflexíveis na re-negociação de dívidas do país com a Gazprom, gigante estatal: russa do setor petrolífero.
Ao mesmo tempo, em contra: posição à oferta da UE, Putin; acena com o ingresso da Ucrânia na União Aduaneira Eurasiana, à qual o presidente russo pretende incorporar todas as ex-Repúblicas soviéticas, com exceção das três que já aderiram à UE. A proposta de adesão ao bloco econômico comandado pela Rússia não representa contrapeso suficiente à oferta europeia. Porém surge acompanhada de um pacote de punições e prêmios de efeito imediato sobre a vulnerável economia ucraniana. Nos últimos dias, em lance decisivo, Putin anunciou a compra de US$ 15 bilhões em títulos públicos da Ucrânia e uma redução drástica do preço do gás importado pelo vizinho. Uma ajuda vital para um país com elevado déficit em conta corrente, poucas reservas internacionais e quase nenhum acesso ao mercado de capitais internacional.
A assinatura do acordo com a UE representaria pequeno alívio imediato a essa situação e implicaria o cumprimento de compromissos em matéria de democracia, direitos humanos e aplicação não seletiva da lei. Prato indigesto para um governo com tendências autoritárias, que mantém na cadeia a principal líder da oposição e está enredado em práticas obscuras no mundo dos negócios. É verdade que o acordo facilitaria um eventual socorro financeiro do FMI. Mas esse também teria um custo: a adoção de reformas econômicas a que o governo ucraniano resiste.
As preocupações geopolíticas não movem os manifestantes que carregam bandeiras da União Europeia na Praça da Independência em Kiev, aos gritos de "Yevropa!". A maioria é formada por jovens com alto nível de educação, fartos do autoritarismo, da corrupção e da falta de oportunidades em seu país. Apesar da crise e do ressurgimento do nacionalismo xenófobo, a Europa oferece-lhes uma perspectiva menos sombria para o futuro. Já na Rússia, sob Putin, o que veem é a consolidação de uma aliança antiliberal entre o Kremlin e a Igreja Ortodoxa, um amálgama de autoritarismo estatal e conservadorismo eclesiástico.
A dura realidade, todavia, é que no curto prazo a Ucrânia não tem como livrar-se do abraço apertado do urso que mora ao lado. Tampouco poderá o governo manter o statas quo. Novos capítulos à vista em 2014.
* É membro do Gacint-USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
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