Ao reabilitar pensadores heterodoxos ao lado de clássicos, coletânea organizada por Lincoln Secco e Luís Bernardo Pericás abre debate sobre outros nomes que recebem pouca atenção da academia
Francisco Carlos Teixeira da Silva*
É com o subtítulo “Clássicos, rebeldes e renegados” que dois professores da USP, Luís Bernardo Pericás e Lincoln Secco, apresentam seu novo livro: “Interpretes do Brasil” (Boitempo). O trabalho reúne — para realizar o balanço proposto — 26 coautores, entre jovens e consagrados pesquisadores de diversas universidades do país.
Lincoln Secco, um pesquisador de longa trajetória, e Luiz Pericás, um jovem brilhante e inquieto, optam na organização do livro por nomes heterodoxos e inovadores. Ao lado de pensadores reconhecidamente “clássicos” e que de forma cotidiana frequentam as bibliografias universitárias, tais como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Darcy Ribeiro, buscaram outros pensadores que foram, em especial no ambiente universitário, relegados como “autores menores”. Na expressão própria dos autores, são renegados, “marginalizados”. As trajetórias, carreiras e obras de homens como Octávio Brandão, Astrojildo Pereira, Leôncio Basbaum, Heitor Ferreira Lima, Rui Facó e Everardo Dias emergem em ensaios de grande valia, na busca de corrigir tais falhas.
As escolhas são bem marcadas e bem explicitadas pela dupla organizadora do livro: são autores que, mesmo tendo se debruçado sobre variadas temáticas — a organização nacional, política, instituições, artes, literatura, educação e partidos políticos —, foram considerados “menores” e “não aceitos ou não incorporados pelo mundo acadêmico”. Assim, autores que pensaram o Brasil, que participaram ativa e valentemente de tais debates — muitos desde os anos de 1920 e 1930 — são, cada vez mais, esquecidos na elaboração de bibliografias, dissertações e teses universitárias.
O ‘establishment’ intelectual em questão
A proposta de resgatar tais autores — quase uma denúncia contra o “establishment” universitário brasileiro (e a expressão é dos organizadores) — faz justiça, necessária, a homens que de forma intensa doaram suas vidas e carreiras ao Brasil e mesmo ao sofrido e lutador continente latino-americano. Surge daí, de tais escolhas, no mínimo dois frutíferos debates. Aceitando que o “establishment” universitário brasileiro se torna, cada vez mais, tecnicista, fechado e com escolhas restritas e dirigidas nos seus quadros e nos seus projetos, caberia pensar se tal fenômeno é de fato generalizado e atinge o conjunto do mundo universitário. A própria organização do livro, com jovens pesquisadores de universidades de São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco, por exemplo, nos mostra que, talvez, o pessimismo crítico dos autores, embora muito bem-vindo como instrumento metodológico, é exagerado. Afinal, são das universidades, do mesmo “establishment”, que emergem os jovens autores, incluindo um dos organizadores da obra, e que propõe os nomes e carreiras dos esquecidos a serem resgatados. Assim, a universidade brasileira não seria tão “conservadora”, e haveria (ainda) espaço, aqui e acolá, para estudos sérios e rigorosos sobre tais autores “malditos”. Talvez, uma ou outra universidade tenha se fechado ao debate; alguns departamentos tenham, de fato, escolhido “deuses tutelares”, e deixado “decair” autores seminais, como os aqui evidenciados. Mas, com certeza, nem todas.
Em segundo lugar, emerge do livro um outro debate, difícil e necessário: por que os clássicos fazem companhia aos “rebeldes” e aos “renegados”? Talvez um livro só sobre os “esquecidos” fosse, em si mesmo, mais contundente, e abrisse espaço para outros tantos “esquecidos”, “rebeldes” e “renegados”. Assim, nomes como Anísio Teixeira faltam nesta lista de “esquecidos” — ao lado de outros, ainda uma vez, esquecidos. O homem que permitiu a emergência de Darcy Ribeiro e Paulo Freire, perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura civil-militar, exilado e morto de forma vergonhosa para o Brasil, deveria constar desta lista de “rebeldes” e de “esquecidos”. Indo além, temos ainda dívidas com Guerreiro Ramos e Josué de Castro, homens que “explicaram” o Brasil e que, por isso mesmo, tiveram sua “morte intelectual” decretada pelas elites. Guerreiro Ramos e Josué morreram de tristeza, a tristeza dos tempos de chumbo. Poderíamos citar mais dois ou três nomes, mas pode-se, também, objetar que seria algo como organizar a lista dos “melhores livros” já escritos. Ninguém jamais concordaria. Correto, seria isso mesmo. Mas, insisto, poderíamos, com certeza, sem nenhuma injustiça com os mestres já consagrados — inclusive contemplados num livro recente de Fernando Henrique Cardoso — abrir algumas páginas, mais espaço, para estes outros nomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no silêncio. Teríamos, então, um livro com sabor de resposta e de desafio.
Sem Anísio Teixeira, sem Josué de Castro e sem Guerreiro Ramos (e ainda Álvaro Vieira Pinto e, claro, um brasileiro que explicou os atavismos do coronelismo e do mandonismo, Victor Nunes Leal, e foi punido por isso, ou um rebelde de todo o sempre, Carlos Marighella, lido em todo o mundo e esquecido entre nós como pensador), o Brasil “rebelde” fica bem menor. Em vez de repetir aqueles que frequentam com assiduidade as nossas bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de “tiro, bala ou susto” — sem esquecer a tristeza, como diria o poeta — para construir um país mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos. Este último, aliás, foi um intelectual negro ridicularizado pelos agentes da repressão por sua negritude — e abrir espaço para vozes negras, como Ramos ou Abdias do Nascimento, por exemplo, talvez fosse uma estratégia “ainda” mais rebelde. Está aberta a porta ao debate. O livro de Lincoln Secco e de Luís Bernardo Pericás, desafiador, constitui-se, neste passo, indispensável em direção a fazer justiça aos verdadeiros esquecidos.
*Francisco Carlos Teixeira da Silva é historiador e professor titular do Iuperj
Fonte Prosa / O Globo
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