Temos dois ministros das Relações Exteriores. O ministro oficial, Luiz Alberto Figueiredo, não tem jurisdição na América do Sul, esfera de operação do ministro-fantasma, Marco Aurélio Garcia, que opera como plenipotenciário do presidente fantasma, Lula da Silva. Garcia assistiu, na Venezuela, às cerimônias governamentais que marcaram o primeiro aniversário da morte de Hugo Chávez. Ele viu, mas não falará.
Ele viu o desfile no Paseo de Los Próceres, a esplanada de Caracas delimitada por postes de iluminação situada no perímetro do Forte Tiuna e adornada por objetos esculturais de inspiração helenística que se abre para o monumento aos heróis da independência. Não foi exatamente um evento em memória ao caudilho "bolivariano", mas uma exibição do equipamento militar importado da Rússia e da China: caças Sukhoi, mísseis terra-ar, blindados T72. Nos discursos, entremeados por torrentes de palavras de ordem, Chávez foi mencionado como "comandante eterno", "nosso pai" e "líder supremo", enquanto a Venezuela ganhou a qualificação de "pátria socialista, revolucionária e majoritariamente chavista".
A nação, Garcia viu, é um movimento, um partido, um ponto de vista político, uma ideologia. Isso, porém, não passa de déjà vu. O novo é outra coisa, que Garcia também viu. O presidente Nicolás Maduro alertou que "somos um povo valente na defesa de nossos direitos" e --mensagem direta!-- insistiu em esclarecer o sentido de conjunto da performance em curso. Maduro disse que as tropas equipadas, as milícias armadas e os franco-atiradores treinados cumprem uma função política: estão ali para enfrentar "quem ouse se contrapor ao projeto cívico-militar". O "povo valente" de Maduro não são os venezuelanos, mas apenas os chavistas. Garcia viu e ouviu.
O conceito de "inimigo interno" tem história na América do Sul. À sua sombra, deflagraram-se os golpes militares no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Em nome do combate ao "inimigo interno", a Junta Militar promulgou o AI-5 e, entre tantos outros, Dilma Rousseff foi presa e torturada. A linguagem da "revolução bolivariana", expressa tanto em discursos oficiais como nos palanques dos comícios, estrutura-se em torno do mesmo conceito que sustentou as "ditaduras de segurança nacional". Garcia permaneceu calado. O governo brasileiro afunda-se na cumplicidade com um regime que, imitando Cuba, qualifica a divergência política como traição à pátria.
A Venezuela não é, ainda, uma ditadura: ditaduras não promovem eleições em cenários de liberdade partidária. Contudo, já não é uma democracia: democracias conservam a independência do Judiciário e não restringem a liberdade de imprensa. A ditadura nasce no solo da linguagem. Leopoldo López, uma destacada liderança da oposição, foi preso na onda de protestos sem nenhuma acusação específica: o governo substituiu o ônus de acusá-lo pela facilidade de insultá-lo, crismando-o como "fascista" e "incitador do ódio". Entidades de direitos humanos pedem a sua libertação; Garcia, não.
A linguagem importa. Numa entrevista em que criticou a "metodologia" de bloqueios de ruas dos protestos oposicionistas nos bairros de classe média do leste da capital, um líder opositor local de Catia, na periferia da Grande Caracas, ofereceu uma aula gratuita de ciência política aos jornalistas. Saverio Vivas disse que os "coletivos" (as milícias chavistas) servem, principalmente, para atemorizar a população das periferias pobres. Nessas periferias, também ocorrem manifestações. Mas, explicou Vivas, sob a intimidação dos "coletivos", os manifestantes apressam-se em qualificá-las como "sociais", não "políticas". Na Venezuela, "política" é para poucos: só pode ser feita pelo regime --e, ainda, mas cada vez menos, por opositores nos santuários de classe média. Isso é o que Garcia viu.
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