• Desde que cheguei a Paris, só ouço falar mal do Brasil, com temor ou horror. Amigos com que cruzo e jornais me assustam
- O Globo
Estou há uma semana em Paris, cuidando da produção do meu próximo filme. Desde que cheguei, só ouço falar mal do Brasil, com temor ou horror. Os amigos com que cruzo e os jornais que leio me assustam, como se eu não conhecesse o país a que se referem; e me revoltam, como se estivessem cometendo grave injustiça com uma população que julgo conhecer bem.
Há uns cinco anos, a Copa do Mundo era coroa radiosa na cabeça do país que, finalmente, acordava para seu natural gigantismo. Hoje, é perigosa ameaça para quem ousar assisti-la ao vivo.
Num planeta conturbado por tantas guerras intermináveis, sequestros em massa, massacres terroristas, regimes bárbaros, o Brasil é tratado como o mais violento país do mundo ocidental.
Meu primeiro sentimento é de ofensa pessoal, a santa irritação com quem fala mal de sua família.
Fui criado a amar os “inventores” do Brasil de todas as raças, cordial e cheio de belos possíveis projetos para a Humanidade. O Brasil de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, de Mário de Andrade e Darcy Ribeiro, de Jorge Amado e Guimarães Rosa, de Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim.
Viajando desde muito jovem por força de meu ofício de cineasta, estava acostumado a ser adulado por tanta coisa que, mesmo nos sabendo miseráveis, o estrangeiro nos admirava em nossa cultura, em nosso jeito de ser, no mundo novo que isso haveria de construir. Um país destinado a melhorar a civilização, o país do futuro. E aí, de repente, parece que o futuro já passou.
O choque com nossas tantas desgraças pode ser o resultado de certa modernidade. Nossa população cresce depressa, aumentando, portanto, a incidência de conflitos no interior dela. Os meios de comunicação estão mais velozes, sabemos de tudo o que se passa à nossa volta no exato minuto em que está se passando, nada mais nos escapa (quando Dom João desembarcou no Rio de Janeiro, em 1808, a notícia só chegou a Goiás, um dos centros de nossa mineração, meses depois). E ainda julgamos que imprensa e televisão preferem a má notícia que vende mais jornal e produz mais audiência.
Mas me volto à História e desconfio que o mito de nossa gentileza era um manto que cobria a fúria de nossa violência. Desde a descoberta, temos nos dedicado a exterminar nossos índios. Fomos a última nação do Ocidente a abolir a escravidão e, ainda assim, como dizia Joaquim Nabuco, não impedimos o prosseguimento de sua obra. Praticamos massacres contra paraguaios e malês, contra os fiéis do Conselheiro, contra pernambucanos e farroupilhas. Permitimos a instalação de duas das mais cruéis ditaduras latino-americanas no século XX, o Estado Novo dos anos 1930 e os militares de 1964.
Hoje, vivemos numa sociedade em que muitos preferem o governo dos traficantes ao governo que nós mesmos elegemos livremente. Em que a polícia é tão violenta e arbitrária quanto os bandidos.
Em que, perdida a confiança na Justiça do Estado, linchamos na rua quem bem nos apetecer. Em que nossas manifestações públicas, mesmo as mais justas, terminam sempre com a destruição dos equipamentos que servem à população mais necessitada deles. Em que os poderosos se banqueteiam com a corrupção sistemática, inclusive na empresa pública de petróleo que passamos a vida defendendo como nossa. Em que a esperteza e o dolo para tirar vantagem sobre os outros são virtudes consagradas.
Não quero que seja assim, não posso admitir que seja assim. Sou da geração da bossa nova e do Cinema Novo, vi Brasília ser construída e São Paulo se tornar a maior e mais rica cidade do continente, comemorei cinco Copas do Mundo, assisti ao Brasil chegar a ser a oitava economia do planeta, dancei na consagração universal do carnaval como o maior teatro popular de rua inventado pelo homem, acompanhei a crescente euforia mundial com tudo o que nos acontecia desde o fim da ditadura militar, a consolidação da democracia, a estabilidade, o início de uma inédita distribuição de riqueza.
O que o mundo sente hoje pelo Brasil é uma enorme decepção dos que esperavam por um novo rumo, uma nova luz. Os que contavam conosco para amenizar sua angústia e realizar alguns de seus sonhos. E os nossos sonhos, quais são?
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Para levantar nosso moral, dois belos filmes brasileiros encontram-se em cartaz.
O primeiro é “Getúlio”, de João Jardim, um filme sobre a ilusão e a solidão do poder, baseado em fatos verdadeiros de nossa história política. O outro é “Praia do futuro”, de Karim Aïnouz, um filme sobre a solidão e a ilusão do amor, baseado em circunstâncias comuns de nossas almas.
No primeiro, Tony Ramos interpreta o drama de Getúlio Vargas como não o faria nenhum outro ator do mundo. No segundo, Wagner Moura volta a nos mostrar que é um dos melhores atores do mundo de sua geração.
E, falando em audiovisual, não custa ressaltar a originalidade e a beleza da novela “Meu pedacinho de chão”, escrita por Benedito Ruy Barbosa e criada por Luiz Fernando Carvalho. Ignorar essa imagem de sonho infantil é perder o sentido das coisas que não têm idade. A inteligência pode estar em qualquer mídia, gênero ou formato.
Cacá Diegues é cineasta
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