• Em livro lançado ontem, José Serra narra os momentos difíceis por que passou no golpe de 64, quando presidia a UNE
Chico Otavio – O Globo
RIO E SÃO PAULO - José Serra soube do incêndio na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), logo após o golpe de 31 de março, enquanto se escondia na fortaleza do deputadoTenório Cavalcanti, em Duque de Caxias.
Se não pudesse reagrupar as forças e resistir, o que faria o então presidente da entidade? Sentindo- se perdido, Serra pensou nos pais. Teve medo. Até hoje, tem dificuldade de escrever sobre o assunto. Confessa ter um “grande malentendido” com esse pedaço de sua vida, cujo trauma continua vivo em sua memória.
Na tentativa de acertar as contas com o período mais difícil de sua trajetória pública, o ex-dirigente estudantil e ex-governador de São Paulo lançou ontem o livro “Cinquenta anos esta noite” com noite de autógrafos em uma livraria na capital paulista. Como ele mesmo definiu, ao chegar ao lançamento, a obra retrata o período em que ele esteve no exílio após o golpe militar no Brasil.
— É um livro escrito espontaneamente e mistura muitas coisas de autobiografia, de análise das situações dos países onde eu estive, do processo de golpes na América Latina e até da minha formação no exterior, da volta ao Brasil e termina em 1977. Foi um pouco o meu período de exílio de 14 anos.
“Cinquenta anos esta noite: o golpe, a ditadura e o exílio”, livro que vai além de um mero relato sobre a escalada de eventos que derrubou o presidente João Goulart. Serra narra em detalhes a sua participação na crise, desde o convívio com Jango, que queria a UNE ao seu lado no enfrentamento aos golpistas, aos dias de angústia que se seguiram à deposição do presidente, incluindo a rápida passagem pela casa de Tenório e os três meses de exílio na Embaixada da Bolívia, de onde seguiu para La Paz após visita relâmpago à família em São Paulo.
Há alguns anos, ao receber as cópias de uma carta, que escreveu ao seu advogado, enquanto padecia exilado na Embaixada da Bolívia, e de um filme mostrando o seu discurso no comício da Central, ambos de 1964, Serra se lembrou de um conto do argentino Jorge Luis Borges. O escritor encontra um jovem, sentando na beira de um rio, e descobre que era ele mesmo. O homem mais velho sente vontade de contar-lhe tudo sobre a vida, para que a vivesse melhor. E foi o sentimento de Serra, ao rememorar o seu papel, como presidente da UNE, na crise que provocou golpe de 31 de março, e o que viria depois.
O livro começa com Serra diante de um presidente estirado numa cadeira estofada, com uma das pernas esticada num banquinho. Jango reunia-se, em outubro de 1963, com dirigentes da Frente de Mobilização Popular, da qual a UNE fazia parte.
Serra protestou contra o pedido de estado de sítio, apresentando pelo governo ao Congresso. Convencera- se de que a supressão das garantias constitucionais, abriria caminho para a intervenção nos governos da Guanabara, de Carlos Lacerda, e de São Paulo, de Adhemar de Barros, principais opositores do governo. Jango o tranquilizou:
— Olha, jovem, não precisas te preocupar, porque, antes de vir aqui, já tomei providências para retirar o projeto do estado de sítio.
O presidente o surpreende ao explicar as razões do pedido:
— Mas o estado de sítio não era contra o povo. Ao contrário. Sei das dificuldades que tenho. Vou dizer uma coisa: não vou terminar esse mandato. Não chegarei até o fim.
Serra foi um observador privilegiado do processo de isolamento de Jango. Aos 21 anos, consultado por ele, deu pitaco até sobre o recém-nomeado ministro da Educação, Júlio Sambaqui. Desse encontro, no gabinete presidencial, Serra recorda-se de um fato curioso. Avisou que só poderia ficar pouco tempo, pois não podia perder o último voo para São Paulo. Jango disse que pediria para atrasar o avião. Não foi necessário.
Alguns episódios são rememorados com humor. Na Embaixada da Bolívia, sem muito o que fazer, passou a observar o comportamento de outros exilados. Descobriu que Marcelo Cerqueira, um dos vices da UNE, não perdia um programa radiofônico de Alziro Zarur, que distribuía sopa para ao pobres. “Éramos todos tripulantes do mesmo navio”, escreveu. Até o ponto final, que trata da volta do exílio em maio de 1977, o livro garimpa, mesmo no Itamaraty, diplomatas que não seguiram a cartilha do regime e foram generosos em tornar menos espinhosa a sua passagem pelo longo exílio.
No lançamento de ontem, Serra foi prestigiado por amigos e políticos, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, o presidente do PPS, Roberto Freire, e os ex-ministros Nelson Jobim e José Gregori. O candidato do PSDB à Presidência, Aécio Neves, cancelou a ida ao evento após uma hora de atraso. Segundo a assessoria de imprensa de Aécio, ele conversou com Serra por telefone e alegou problemas com o horário de seu voo para Brasília.
Serra contou que a elaboração do livro o fez revisitar momentos difíceis:
— Foram vários, como a noite do golpe no Brasil e a prisão no Chile.
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