quarta-feira, 25 de junho de 2014

*Marcos Guterman: PT, Maluf e o desdém pela verdade

- O Estado de S. Paulo

Quando, em fins de maio, aceitou o abraço de Paulo Maluf, o candidato petista ao governo de São Paulo, Alexandre Padilha, sabia que teria de dar explicações. Não é fácil celebrar, de modo festivo, em público e com amplo registro fotográfico, a aliança com aquele que talvez seja o maior símbolo do que há de pior na política. Mas Padilha desincumbiu-se bem - até demais - da tarefa. Ao deixar claro que não sentia nenhuma espécie de constrangimento, cobrindo Maluf de elogios, o candidato comprovou que, três décadas após a fundação do partido criado para denunciar "tudo isso que está aí", a aliança com o malufismo se tornou natural para os petistas.

A má política é o terreno próprio da desfaçatez, mas a elite do PT tem demonstrado notável disposição para construir um novo padrão de ausência de escrúpulos, que é o exato oposto do que propunham enfezados barbudos de boina em suas assembleias nos anos 80 e 90. Maluf é, digamos assim, apenas a parte pitoresca do escabroso mosaico que ora responde pelo apoio ao governo federal. Rejeitar o voto de Maluf seria até hipócrita diante do nível do resto da base de sustentação da presidente Dilma Rousseff. O que causou espanto, na verdade, foram a tranquilidade com que os petistas agora abraçam Maluf e as justificativas inventadas para enterrar de vez os princípios de seu partido.

É claro que a disputa política raramente é travada com total honestidade. Nesse universo não é incomum que a "verdade" seja uma mentira pronunciada com convicção, que serve a objetivos estratégicos. O eleitor sabe (ou deveria saber) que muitos de seus representantes no Congresso e no Executivo, ou aqueles que pleiteiam ser eleitos, não dizem a verdade o tempo todo, pois esta pode ser inconveniente e mesmo insuportável. Além do mais, exige-se franqueza dos homens públicos, mas é uma exigência que esbarra vez ou outra na complexa necessidade de defender o interesse coletivo ou a "razão de Estado". A mentira, certamente abominável do ponto de vista moral, pode se justificar, no limite, quando é útil para evitar um mal maior.

No entanto, como salientou Celso Lafer em Desafios: Ética e Política, há nisso um problema ético com ao menos dois elementos: primeiro, ao mentir para o cidadão comum porque supostamente sabe o que é "melhor" para a sociedade, o governante coloca-se acima dos governados; segundo, porque o cidadão comum em nenhuma hipótese pode mentir para o Estado, criando aí uma situação assimétrica entre ele e seus representantes democráticos. A mentira política, portanto, não é apenas um desafio às tradições religiosas e morais; ela tem implicações práticas, pois, quando é incorporada pelo governante não como uma necessidade excepcional, mas como uma estratégia permanente em nome de um projeto de salvação nacional, que por definição não pode sofrer oposição ou crítica e deve ser conduzido sem transparência, ganha contornos autoritários e turva o próprio regime democrático.

Como observa Hannah Arendt, recorrendo à etimologia da palavra, "mentir" pode significar "inventar", isto é, o ato de imaginar uma realidade diferente. Seria, portanto, um modo de questionar o real e propor soluções para mudar o mundo. Mas, quando motivada por má-fé, a imaginação torna-se um mecanismo para simplesmente distorcer os fatos, e então os mentirosos políticos esperam que o mundo da fantasia seja vivido como se fosse o real - isto é, que suas versões mentirosas sirvam para confundir a percepção dos fatos. Esse é, precisamente, o caso da justificativa oficial para a aliança entre Maluf e o PT.

O presidente nacional do partido, Rui Falcão, chegou a explicar que a aliança é baseada em "princípios", que são, segundo suas palavras, "boa utilização dos recursos públicos, prioridade dos investimentos para as áreas sociais e participação popular na gestão". A mentira embutida nessa declaração é tão evidente que chega a ser constrangedora, pois não se pode atribuir a Maluf, procurado pela Interpol sob acusação de desviar dinheiro público quando foi prefeito de São Paulo, a qualidade de utilizar corretamente os recursos do erário. Falcão certamente sabe, pois o que não lhe falta é inteligência, que o eleitorado conhece suficientemente o notório Maluf para não acreditar nessa suposta coincidência de "princípios" entre o PP e o PT - ainda que alguns possam dizer, maldosamente, que malufistas e petistas de fato compartilham hoje em dia muitos princípios, em especial aquele segundo o qual, na política, nenhuma artimanha é vergonhosa demais quando se trata de manter o poder.

Mas as explicações petistas são mera formalidade, pois a elite do PT se considera portadora da verdade histórica e todos os seus atos - como a aliança com um inimigo histórico como Maluf, aquele que já foi chamado de "nefasto" pela ex-prefeita petista Marta Suplicy - se enquadram na máxima de que os fins justificam os meios. Nesse contexto, nenhum engodo é condenável. Se Maluf representa um minuto a mais na propaganda política na TV, considerada essencial para eleger Padilha, então que Maluf seja abraçado diante das câmeras como um velho amigo - sem nenhum constrangimento, como fez questão de dizer o descontraído candidato petista.

Com isso os petistas estão a dizer aos brasileiros que exigências como honestidade e retidão de caráter são secundárias diante da necessidade de manter vivo o projeto redentor do lulopetismo. Seriam até mesmo, é possível dizer, obstáculos para a realização da utopia prometida por Lula e seus profetas - eis por que os condenados no processo do mensalão são considerados heróis por seus pares e simpatizantes, já que tudo o que fizeram respeitou o imperativo messiânico do partido. De acordo com essa lógica, a tarefa de refundar o Brasil não pode estar manietada por considerações éticas. Ao contrário, parece que o desdém pela verdade se tornou a principal exigência curricular para aqueles que desejam integrar a barca petista em sua épica jornada.

*Jornalista

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