- O Estado de S. Paulo
Na Copa das Confederações torcemos para o Taiti. Mesmo quando perdia de 10 a 0, ainda vibrávamos com as raras oportunidades de um gol de honra. O Taiti não é aqui. É um país do surfe de ondas gigantes, com suas águas azuis e a temível Praia de Teahupoo, conhecida como Quebra Crânio.
Já o Brasil é, ou era, o país do futebol. Gastamos R$ 40 bilhões para sediar a Copa do Mundo e fomos os únicos a perder de 7 a 1.
A presidente Dilma declarou no Paraná que o Exército usaria, para resgatar as vítimas do temporal, um bote de fibra óptica. No início fiquei em dúvida. Tinha visto na TV um programa sobre como o GPS orienta a agricultura americana, aumentando sua produtividade e traçando com rigor a trajetória ideal dos tratores. Será que haviam inventado um bote de fibra óptica para explorar as riquezas do mar, quem sabe até do pré-sal? Mas o bote de fibra óptica não existe nem será inventado.
Ele é, para mim, o sinônimo de uma canoa furada em que todos navegamos no momento.
Dilma também chamou de urubu quem não acreditava nas maravilhas da Copa. Caiu um pequeno viaduto, mas isso não é problema, porque não havia ninguém do governo embaixo dele no instante da queda. Já escrevi sobre ser chamado de urubu pela artilharia eletrônica petista. Urubu é o símbolo da torcida do Flamengo. É o preto da camisa rubro-negra, cores do Íbis, o pior time do mundo, ou da Alemanha, que nos serviu o chocolate da Copa das Copas, portanto, o chocolate dos chocolates.
Não sei o que a presidente tem contra os urubus. Tom Jobim amava-os e discorria longamente sobre a elegância de seu voo, nas mesas do Degrau, no Leblon da sua época. Fez uma linda melodia para traduzir em sons a beleza de seus movimentos. Não creio que seja pela cor, porque esse tipo de preconceito, teoricamente, o PT não tem. Ou porque come bichos mortos, algo que a maioria da humanidade faz. Pode-se dizer em defesa dos seres humanos que não comem um animal cru. Mas isso era antes da chegada dos restaurantes japoneses, de vez que os bifes tártaros eram exclusividade de uma minoria.
Dilma estava rígida na final da Copa. Nem se levantou para aplaudir o gol da Alemanha. E quem não aplaudiu aquele gol de Götze ou não gosta de futebol ou é argentino, pois os hermanos sentiram ali que perdiam o título. Compreendo esse medo, já que estamos no mesmo bote de fibra óptica, na mesma canoa furada. Durante os primeiros dias após os 7 a 1 fiquei com medo de abrir as gavetas e encontrar mais um gol da Alemanha. Se Dilma deixasse sua cadeira, poderiam encontrar mais um gol da Alemanha embaixo dela.
Continuo defendendo o direito ao delírio e, claro, as opiniões. Lula disse na África do Sul que os outros países viriam disputar o segundo lugar, porque a Copa era nossa. Parreira disse que estávamos com a mão na taça. Felipão elogiou o próprio trabalho e o da geração tóis, que se define com um movimento de braços que faz um T, o mesmo com que Dilma posou na internet quando as coisas iam bem. A geração tóis, que se descreve com os braços, na verdade, deu uma banana para os que esperavam, ao menos, a garra dos argelinos.
Livre do furor patriótico, estimulado pelo governo e por grandes empresas envolvidas, é possível agora pensar com calma.
Como encarar com otimismo uma seleção que toma a família como modelo? Nada contra a família, respeito a opinião do herói da torcida, David Luiz: sexo só depois do casamento. Mas a família não é a forma adequada para desenvolver um trabalho desse tipo. Entre crises de choro e rezas, os jogadores se desmanchavam. E os psicólogos diziam que era o peso de tanta expectativa nacional. Somos o único país do mundo onde torcida a favor é vista como um fator negativo.
A torcida foi ótima. Não podia ser a mesma do Taiti, porque levamos o Brasil a sério no quesito futebol. Os inúmeros canais de TV nos puseram, nos últimos anos, em contato com o futebol de quase todo o mundo. Campeonatos espanhol, inglês, alemão. Era possível ver uma evolução maior que a brasileira. Mas isso era uma evidência para os que gostam e acompanham o futebol, embora muitos cronistas se tenham deixado levar pela emoção patriótica.
A cúpula do futebol está apodrecida. Talvez venha agora uma mudança, já que o foco está na análise da catastrófica participação brasileira na Copa. Mas quantas coisas não estão decadentes no Brasil e ainda estão camufladas? A indústria está em decadência e seu movimento para baixo ainda não desperta o interesse nacional. A política está decadente, num nível de putrefação que os franceses definem como faisandé, o qual repugna até meu estômago de urubu.
Somos um povo alegre e comunicativo. Mas isso não supera uma lacuna em nossa educação: um esmagador número de monoglotas. Em 2008 tentei transformar isso num grande tema político.
Avançamos muito pouco desde então e não há sinais de termos tomado consciência dessa fragilidade.
Seria injusto com o marxismo atribuir a indiferença ao inglês a uma resistência ideológica. Os chineses não pensam assim e tratam de dar passos mais largos.
Sei que é difícil apontar essas lacunas. No Brasil vivemos num mundo tão extraordinário que temos de imitar o célebre urubu de Stanislaw Ponte Preta e voar de costas. Sobrevoar um país onde os jornais diziam que o zagueiro Dante iria ser um trunfo porque, jogando no Bayern, conhece os alemães. E nem uma vivalma para lembrar as fortíssimas evidências de que os alemães podiam também conhecer Dante.
Nos morros do Rio, estimulados por traficantes, alguns moradores chamam os adversários de alemães. Está na hora de nos abrirmos um pouco para algumas qualidades dos alemães.
Podemos ser um país melhor. Antes teremos de perder esse espírito de fodões de que com tóis ninguém pode, vem quente que estou fervendo. Ele favorece os apagões, nas semifinais da Copa ou na noite de núpcias. Foi-se o tempo em que pensávamos que os alemães eram limitados porque eram apenas organizados e bem treinados. São tudo isso e têm talento. É a única combinação que leva à vitória ou, ao menos, a uma derrota honrosa.
*Fernando Gabeira é jornalista.
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