• Há cem anos, Pessoa dava vida a poetas igualmente inesquecíveis.
Rodrigo Suzuki Cintra – Valor Econômico
SÃO PAULO - Costumava passear calmamente pelas ruas de Lisboa. De modos pacatos, de trato gentil, de conversa tranquila e hábitos urbanos serenos, nada do seu exterior poderia apontar para o turbilhão de sentimentos e ideias que guardava dentro de si. Mas era um homem cindido. Dentro de sua alma, não havia apenas milhares de versos a compor, a pedir por existência, apareciam verdadeiramente poetas inteiros a ser explorados, outras possibilidades de si mesmo.
E foi então que alguma coisa aconteceu a esse predestinado homem entre março e junho de 1914. Pois, em um golpe de gênio, inventou em sucessão assombrosa os três maiores poetas portugueses do século XX: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Quatro, para falar a verdade, pois ele mesmo, após esse surto criativo, jamais escreveria sob seu nome de maneira igual e, reinventando a si mesmo, sem sombra de dúvida, também figuraria como um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos. (Veja os quatro, ao lado, nos traços de Almada Negreiros.)
A questão não é tão intrincada quanto parece. Estamos falando de Fernando Pessoa, o maior poeta português do século XX. Ocorre que ele inventou há cem anos, no intervalo de quatro meses, aproximadamente, três poetas completamente diferentes. Não se tratava de um daqueles casos em que o autor escreve com outro nome, utilizando um pseudônimo, uma máscara para poder escrever sobre questões que não ousaria assinar com o próprio nome. Pessoa inventou três poetas inteiros, os três heterônimos, como se costuma chamá-los, de substancial envergadura artística.
Os heterônimos ultrapassam profundamente os pseudônimos. Correspondem a verdadeiras personalidades poéticas completas. A rigor, a heteronomia só pode ser aplicada à tríade inventada por Pessoa em 1914. Isso porque só esses poetas foram dotados de biografia detalhada, mapa astral, descrição física, obras, influências, concepções de mundo e, sobretudo, estilos radicalmente diferentes.
No começo de março de 1914, no dia 8 ou talvez 13 (há indícios documentais conflitantes para a determinação da data), Fernando Pessoa teve seu momento criativo triunfal. Nesse dia, em êxtase, escreveu mais de 30 poemas de "O Guardador de Rebanhos", atribuindo-os a um poeta formidável chamado Alberto Caeiro. A criação de poemas para Caeiro foi, certamente, a certidão de nascimento artístico de Pessoa. Se por um lado ele já escrevia desde criança com outros nomes, pseudônimos, ou até mesmo pré-heterônimos, foi com Caeiro que a heteronomia se mostrou, em toda a sua amplitude, como um modo de fazer poesia particularmente próprio. Pois se seguiu à invenção de Caeiro, quase por oposição, a de Álvaro de Campos e Ricardo Reis.
Essas personalidades artísticas, caracteres falsos, no entanto, se realizavam poeticamente de maneira diversa de seu autor original. De modo que Pessoa passa a ser entendido como um ortônimo quando escreve sob o próprio nome, não podendo se confundir seus poemas com os dos heterônimos mais conhecidos que compõem a trindade portuguesa do começo do século XX.
Há estudos sérios que enumeram uma quantidade maior de heterônimos usados por Pessoa. A verdade é que isso depende do critério de classificação. Teresa Rita Lopes, por exemplo, acaba listando cerca de 72 heterônimos na obra completa do poeta português. Entre esses, destaca-se, por sua posição na obra de Pessoa, Bernardo Soares, autor fictício do "Livro do Desassossego". Esse autor, no entanto, parece ser mais um semi-heterônimo do que um poeta completo diverso de Pessoa, pois, ao contrário dos três mais conhecidos, tem semelhanças muito marcantes com o estilo do Pessoa em sua obra ortônima.
Desde a infância, Fernando Pessoa escrevia textos e os assinava com nomes diversos do seu. A brincadeira, na maioria das vezes, consistia em escrever para si mesmo como se, de fato, fosse outro. Como teve formação na língua inglesa, em Durban, era natural que seus nomes inventados tivessem procedência nessa língua. Ele escrevia, em certo momento da vida, sob o nome de Alexander Search ou como Robert Anon. Teve até mesmo um pseudônimo francês, Chevalier de Pas, sua primeira incursão no registro de ser outro.
Mas é claro que a brincadeira, se por um lado já esboçava a atividade criativa precoce e os futuros heterônimos, por outro, também assinalava para o homem cindido que Fernando Pessoa parecia ser. Um poeta que não teve em vida o reconhecimento por grandes feitos literários, tampouco ganhou prêmios ou publicou muitos livros. Sua lógica era a de um mundo interno, sua estética era a do fingimento. Fernando Pessoa foi o poeta que teve que ser outros para poder ser ele mesmo.
Rodrigo Suzuki Cintra é filósofo e doutor em direito pela USP. Leciona na Universidade Mackenzie
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