- O Estado de S. Paulo
Desde 2013, dois tipos de evento não diretamente vinculados à eleição ganharam peso no cenário, pois afetam o humor dos cidadãos. Um é a Copa, com todas as implicações que poderia ter para a disputa política mais ampla. Outro são as manifestações de rua. Deflagradas em junho e desde então incorporadas ao cotidiano, são consequência, no plano político-social, do acúmulo de transformações do País desde a redemocratização, nos anos 1980. Mas são principalmente decorrência dos progressos experimentados nos últimos 20 anos - desde que foi debelada a hiperinflação pelo Plano Real.
Na segunda metade dos anos 80, caíram os últimos escombros do autoritarismo do regime militar, franqueando o acesso à cena pública de uma miríade cada vez mais ampla de atores. A nova Constituição lançou as bases jurídicas de uma cidadania social de nível inaudito, reforçou o papel de atores institucionais capazes de exercer controles mais efetivos sobre os agentes governamentais (notadamente, o Ministério Público), criou um federalismo trino e redistribuiu recursos e competências, consolidou um papel de protagonista para o Executivo federal, estabeleceu novas regras eleitorais etc.
O Plano Real e as reformas que lhe seguiram modificaram as relações entre Estado e mercado, conferiram maior estabilidade à moeda e deram um impulso inicial à redução da pobreza. Tal impulso intensificou-se durante os governos petistas, com a substancial redução não só da pobreza, mas da desigualdade, cujo maior desdobramento foi a ascensão econômica de um amplo contingente de brasileiros, a chamada "nova classe C".
Por um lado, se tais transformações incrementaram as condições de vida da população em geral e nosso patamar civilizatório, por outro elevaram as expectativas populares a um patamar superior às capacidades estatais instaladas. Tal descolamento entre expectativas e seu atendimento não decorre, porém, de uma piora das capacidades do Estado. Na maior parte dos casos houve até melhora, mas tal avanço foi em grau menor que o das mudanças sociais (paradoxalmente, induzidas pelo próprio Estado) e, sobretudo, os anseios delas decorrentes.
Portanto, o que começou em junho de 2013 é mais a consequência de um longo acúmulo do que o espocar isolado de insatisfações. Contudo, tal processo gestou produtos novos, de novas consequências. Um é a forma de convocação dos participantes, baseada em novas tecnologias e atingindo partícipes em maior número, mais heterogêneos e desprovidos da organicidade típica dos movimentos tradicionais que protagonizaram a redemocratização.
Outro produto novo é a introdução nas manifestações de uma gramática cuja essência são as formas violentas de manifestação política. Tal gramática teve uma série de consequências deletérias à democracia: afugentou cidadãos recentemente mobilizados; reduziu o apoio popular às manifestações e tirou do centro da agenda a discussão sobre os excessos policiais, pois gerou pretextos para justificá-los.
Porém, a pior consequência das manifestações violentas consubstanciou-se recentemente: a criminalização direta do próprio ato de protestar. Ocorreu em São Paulo, na ameaça de responsabilizar o Movimento Passe Livre pelas ações de black blocs, alegando-se que estes agiram num protesto convocado por aqueles. No Rio, foram as prisões preventivas de manifestantes às vésperas da final da Copa, sem que as acusações de que eram alvo fossem suficientemente explicadas pela polícia e pela Justiça, como alertou inclusive a OAB.
O risco para a democracia é a criação de pretextos para reprimir preventivamente opositores que ameacem ir à rua, ou para criminalizá-los por atos de terceiros sobre os quais eles não têm qualquer controle. O sacrifício da liberdade de manifestação é um preço caro demais para se coibir a violência política.
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