• "Reformas estruturais e mais investimento em infraestrutura ajudariam de fato a levantar o crescimento"
• "Nós não estamos excessivamente preocupados com a situação da conta corrente do Brasil"
Sergio Lamucci – Valor Econômico
WASHINGTON - A diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, recomenda mais disciplina fiscal ao Brasil para o país reduzir o seu nível de endividamento, num quadro em que as taxas de juros são bastante elevadas. "Juros acima de 10% sobre uma relação dívida/PIB de cerca de 65% resultam em vários pontos percentuais do PIB pagos aos credores", nota Lagarde.
Nesse cenário, ela se diz "encorajada" pelos comentários feitos na semana passada por Joaquim Levy, o futuro ministro da Fazenda, "em que ele ressaltou o compromisso do governo com a sustentabilidade fiscal e com políticas macroeconômicas equilibradas".
Para ela, "essas medidas, combinadas com um foco continuado em manter os índices de inflação sob controle, serão fundamentais para fortalecer a confiança, impulsionar o crescimento e permitir assim que o avanço na inclusão social prossiga no país".
Nas estimativas do Fundo, a dívida bruta brasileira deve ficar neste ano em 65,8% do PIB. Pelo critério usado no Brasil, que exclui os títulos do Tesouro na carteira do Banco Central (BC), ela atingiu 62% do PIB em outubro.
Lagarde falou na semana passada ao Valor e ao jornal chileno "La Tercera". Hoje e amanhã, o FMI e o Ministério da Fazenda do Chile promovem, em Santiago, a conferência "Desafios para assegurar o crescimento e uma prosperidade compartilhada na América Latina". O Valor é parceiro de mídia do evento.
Ao tratar da combinação de baixo crescimento e inflação alta experimentada pelo Brasil nos últimos anos ela diz acreditar que o problema se dá principalmente pelo lado da oferta. Para enfrentar esse quadro e melhorar as perspectivas para a economia, Lagarde sugere projetos de infraestrutura e reformas estruturais que melhorem a educação, a saúde, o ambiente de negócios e facilitem o investimento.
O déficit em conta corrente do Brasil, por sua vez, não é um motivo de preocupação excessiva para Lagarde, ainda que tenha atingido 3,7% do PIB nos 12 meses até outubro. O nível elevado de reservas internacionais e o volume expressivo de investimentos estrangeiros diretos são pontos positivos, segundo ela.
Lagarde também tratou do momento de transição da América Latina, que não conta mais com os preços exuberantes de commodities. Melhorar a infraestrutura e a produtividade dessas economias, investindo em capital humano, são pontos importantes para os países da região lidarem com esse cenário de produtos básicos mais baratos.
Emergentes como o Brasil também terão pela frente a normalização da política monetária americana. Segundo ela, a alta dos juros pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano) deverá elevar as taxas de longo prazo nos EUA, o que pode provocar um movimento de retorno dos capitais para a economia americana. Para esse tipo de instabilidade, "os mercados emergentes podem se preparar trabalhando nos seus fundamentos, garantindo que têm amortecedores, assegurando que têm tanto uma política monetária quanto reservas disponíveis para resistir a episódios excessivos de volatilidade", diz Lagarde.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: O FMI vai realizar a conferência sobre a América Latina em Santiago e no ano que vem o encontro anual com o Banco Mundial será em Lima, no Peru. Isso indica maior proximidade do Fundo com a região? Há uma abordagem diferente, de se aproximar dos países latino-americanos numa situação melhor, em vez de fazer isso num momento de crise?
Christine Lagarde: O FMI deve ter uma abordagem ampla e completa em relação a todos aos seus 188 países membros. Isso significa que nós temos que ser capazes de ser o Fundo Monetário de todas as situações seja na crise, na estabilidade ou na prosperidade. Independentemente se oferecemos supervisão ou aconselhamento de políticas, assistência técnica ou apoio financeiro em caso de dificuldade, nós temos que estar sempre disponíveis. Em relação a conferência em Santiago, nós realizamos um evento de alto nível em Aman, na Jordânia, no ano passado para toda a região do Oriente Médio. E fizemos o mesmo na África neste ano, com uma grande conferência regional em Moçambique. E agora iremos para a América Latina, em Santiago. O objetivo é alavancar o conhecimento e a qualificação intelectual de todos os participantes do encontro, incluindo o FMI, mas também de ministros das Finanças, presidentes de bancos centrais e membros da comunidade acadêmica, para focar nas transições pelas quais todas as regiões, inclusive a América Latina, passam no momento.
Valor: Que transições?
Lagarde: No caso latino-americano, houve uma década de preços de commodities elevados, de crescimento confortável, para um estágio em que os preços desses produtos estão em queda, com a atividade desacelerando. Isso implica uma transição, e uma diversificação será necessária para muitas economias da América Latina. Essa é a abordagem que adotamos, um foco regional quando há um nexo regional. Muitos países latino-americanos exportadores de commodities enfrentam a mesma dificuldade.
Valor: Neste ano, a desigualdade ganhou espaço na agenda. Na América Latina, porém, a classe média cresceu a um ritmo forte na última década. O que fez esse assunto ganhar visibilidade no debate global?
Lagarde: A publicação do livro de Thomas Piketty ("O Capital no século XXI") teve um grande papel. Nós, porém, já vínhamos trabalhando na questão da desigualdade por alguns anos, e publicamos estudos sobre o papel da desigualdade e do crescimento e sobre o impacto de políticas redistributivas na desigualdade, sem esperar que Piketty publicasse o seu livro. Um dos motivos pelos quais Piketty se tornou mais popular, no meu ponto de vista, é que ele reuniu uma grande quantidade de dados e colocou os holofotes nos EUA e em outras economias avançadas. Quando você volta o espelho para uma economia muito próspera, em que as desigualdades cresceram, isso provoca esse tipo de reação. É um bom debate para se ter, porque os resultados do nossos estudos são de que desigualdade excessiva não é boa para o crescimento econômico sustentável. Em relação à melhora do padrão de vida da população pobre e, consequentemente, o aumento da classe média, são bons acontecimentos se forem suficientemente inclusivos.
Valor: A zona do euro e o Japão continuam a crescer pouco e os EUA são a única das grandes economias avançadas a crescer mais rápido. A recuperação global vai continuar fraca e desigual por um longo período, e quais as consequências desse cenário para os emergentes?
Lagarde: Não podemos esquecer que a economia global está crescendo. A tendência é focar em quão frágil e desigual é o crescimento, e em como isso ameaça a recuperação. Mas ela está crescendo. A nossa projeção é que a economia global crescerá um pouco mais de 3% neste ano e 3,8% no ano que vem. Não é como se ela estivesse parada. Os riscos que eu mencionei no encontro anual [do FMI e do Banco Mundial, realizado em outubro, em Washington] são a combinação de um crescente risco geopolítico, da mudança dessincronizada da política monetária nos países desenvolvidos e o impacto que essa mudança pode ter sobre os países receptores de fluxos de capitais. Além disso, existe esse fator que eu chamei de "novo medíocre" para descrever uma combinação em muitos países de baixa inflação, baixo crescimento e alto desemprego. Na América Latina, a situação é um pouco diferente, porque você tende a ter inflação mais alta do que na Europa e no Japão, o que pede uma política monetária diferente. Há também um menor crescimento, mas ainda há crescimento. Em alguns países, não em todos, a taxa de desemprego caiu. O quadro varia a depender dos países, mas eu identifiquei esse "novo medíocre" como uma das ameaças se as autoridades não tomarem as decisões corretas. Eu não acho que seja um destino inevitável para a economia global caminhar nessa direção. Se as autoridades tomarem as decisões corretas, com o objetivo de estimular o crescimento amigável a empregos, isso pode ser evitado.
Valor: E o cenário para os mercados emergentes?
Lagarde: Nós estamos numa grande fase de transição. A China, por exemplo, está saindo de um crescimento liderado pelas exportações para olhar mais dentro do país. Depois de muito investimento, caminha na direção de mais consumo. Em consequência, o nível do crescimento ao longo do tempo caiu de 10%, há cerca de seis ou sete anos, para ao redor de 7% atualmente, e talvez menos do que isso no futuro. Na América Latina, muitos países dependeram pesadamente - e este é o caso do Chile - de uma indústria extrativa, com muitos investimentos indo para a mineração e todo o crescimento que era gerado pelo setor. Bem, isso claramente vai desacelerar, porque haverá menos demanda e a economia chilena vai mudar ao longo do tempo. O Brasil também passa por um fenômeno parecido, com uma economia muito mais ampla, com quase 200 milhões de pessoas e políticas sociais maciças, que tiraram muitas pessoas da pobreza em que estavam há dez anos.
Valor: A normalização da política monetária nos Estados Unidos vai aumentar a volatilidade nos mercados financeiros globais? Como os países emergentes devem se preparar para esse cenário de juros mais altos nos EUA?
Lagarde: Nós tivemos um período de volatilidade inacreditavelmente baixa, e é provável que haja uma transição para um nível mais normal de volatilidade. Com o fim das compras de ativos pelo Federal Reserve, a política monetária americana vai usar, digamos entre o curto e o médio prazo, instrumentos mais tradicionais - as taxas de juros. Isso deverá ter um efeito nos juros mais longos nos EUA, que presumivelmente vão subir, devendo induzir a um movimento de capitais de onde eles são atualmente remunerados de volta para os EUA. Para esse tipo de volatilidade previsível, os mercados emergentes podem se preparar trabalhando nos seus fundamentos, garantindo que têm amortecedores, assegurando que têm tanto uma política monetária quanto reservas disponíveis para resistir a episódios excessivos de volatilidade. Uma coisa, de um certo modo, é que em maio de 2013 e um pouco em outubro deste ano nós tivemos pequenos sinais, como se fossem pequenos ensaios, de que poderia haver um pânico. Então nós vimos os países que reagiram prontamente e estavam fortes praticamente não sofreram nenhum efeito. Estou pensando na Coreia do Sul, por exemplo. Mas se você olhar para a Indonésia e a Índia a situação foi diferente, porque as políticas macroeconômicas não estavam tão sólidas e confiáveis como a de um país como a Coreia.
Valor: O superciclo de commodities acabou. Em que medida os preços mais baixos desses produtos explicam o crescimento mais baixo na América Latina e o que os países da região devem fazer para lidar com essa nova situação?
Lagarde: Para aqueles países que dependem pesadamente da extração, comércio e exportações de commodities, a demanda está provavelmente mais fraca e os preços estão certamente menores. Claramente, isso tem um impacto sobre esse crescimento mais lento. A grande pergunta é o que fazer agora, como melhorar a qualificação da população, tornar o ambiente de negócios mais amigável, encontrar novas fontes de crescimento, como desenvolver o setor de serviços, por exemplo. Essas serão as próximas questões. Já o Brasil é um mercado muito grande e profundo, com muitas oportunidades. Mas, na minha avaliação, um dos princípios comuns que vamos debater em Santiago é - existe a infraestrutura necessária, por exemplo? Nós temos o nível adequado de infraestrutura em termos de energia, transporte e portos? Segundo, como nós podemos melhorar a produtividade dessas economias, e como reforçar o capital humano por meio de um melhor sistema de educação, como o Chile está planejando.
Valor: O Brasil tem experimentado uma combinação de baixo crescimento e alta inflação nos últimos anos. O que explica essa tendência e como o Brasil pode enfrentá-la?
Lagarde: No Brasil, o que parece intrigante é que, por todas as medidas e pelos sinais que observamos, parece existir pouca ociosidade na economia. Quando nós olhamos para a taxa de desemprego, ela está em queda. É um pouco como um quebra-cabeça, na verdade, mas nós acreditamos que é mais um problema do lado da oferta. Reformas estruturais voltadas para o mercado brasileiro e mais investimento em infraestrutura ajudariam de fato a levantar o crescimento. Ter uma combinação de baixo desemprego e inflação alta não é incomum segundo os princípios econômicos, mas na nossa visão isso pode ser enfrentado por esses dois canais - reformas estruturais e projetos de infraestrutura.
Valor: Quais as principais reformas estruturais?
Lagarde: Reformas na educação, na saúde, na infraestrutura, em relação ao ambiente de negócios, para ajudar a facilitar a abertura de negócios. E também há a questão dos projetos de investimento em que as pessoas querem investir, mas há a necessidade de várias autorizações.
Valor: Apesar do baixo crescimento, o déficit em conta corrente brasileiro está na casa de 3,7% do PIB em 12 meses. Em que medida isso é motivo para preocupação?
Lagarde: Não, nós não estamos excessivamente preocupados com a situação da conta corrente do Brasil. Primeiro, porque o Brasil tem reservas significativas e foi muito cauteloso em acumulá-las porque a nossa avaliação é que a moeda está moderadamente sobrevalorizada, ou seja, provavelmente está mais apreciada do que depreciada em comparação com outras. Há muito investimento estrangeiro direto. Nós não estamos excessivamente preocupados com o balanço em conta corrente.
Valor: O déficit fiscal brasileiro está em 5% do PIB no acumulado em 12 meses e houve um aumento da dívida bruta como proporção do PIB, devido a um superávit primário menor e o crescimento baixo. Como a sra. analisa as contas fiscais brasileiras e o que o Brasil deve fazer nesse front?
Lagarde: Há um número que você não mencionou, que são os juros pagos pelo Brasil que incidem sobre a dívida, acima de 10%. Juros acima de 10% sobre uma relação dívida/PIB de cerca de 65% resultam em vários pontos percentuais do PIB pagos aos credores do Brasil. A nossa recomendação seria, por meio de política macroeconômica, tentar reduzir o nível de endividamento, para diminuir o impacto do serviço da dívida sobre o orçamento geral do Brasil e restaurar a situação. Essa seria uma recomendação forte.
Valor: Por meio de mais disciplina fiscal?
Lagarde: Sim. Nesse contexto, eu fiquei encorajada pelos comentários feitos pelo ministro indicado para a Fazenda, Joaquim Levy, em que ele ressaltou o compromisso do governo com a sustentabilidade fiscal e com políticas macroeconômicas equilibradas. Como as novas autoridades afirmaram, essas medidas, combinadas com um foco continuado em manter os índices de inflação sob controle, serão fundamentais para fortalecer a confiança, impulsionar o crescimento e permitir assim que o avanço na inclusão social prossiga no país.
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