• Não me esqueço do ano em que entrei menino e dele saí homem feito
- O Globo
Raramente em me pauto neste espaço que tanto me anima. Pautado, porém, pela profissão de professor que exerço faz uns 60 anos, desde jovem produzo receitas. Aliás, pensando bem e mais francamente, sempre fui um pautado. Ao me desprender das rotinas caseiras, pautei-me pelos amigos.
“Leia isso ou aquilo”, diziam-me e, na busca, achei que podia chegar ao limite do limite se fosse capaz de escolher alguma “matéria”, “assunto” ou “ciência”. Mal em matemática, gostava de história social e era razoável nas composições de português, mas perdia para o Heitor Augusto e jamais consegui ser o favorito de Dona Mariola, nossa devotada professora. Uma vez escrevi uma “Viagem à Lua” inspirada num filme assistido no cinema Central de Juiz de Fora. A novidade não era o recontar da aventura que, décadas depois, assisti como realidade em preto e branco numa televisão em Cambridge, Massachusetts. A inovação da minha versão era a formal — escrevi “à máquina”, roubando uma Olivetti negra que não sei até hoje por que meu pai guardava no fundo do seu impecável guarda-roupa.
A professora gostou da forma, mas não do conteúdo. Mas fui elogiado “pelo capricho” porque, para escrever uma mera página ou duas, trabalhei toda uma tarde e tive a experiência do contato com a língua escrita, a qual não tem interlocutores externos, não admite silêncios nem grandes ignorâncias. As palavras tornam-se reais, duras ou suaves e entramos em contato com uma totalidade que, no fundo — conforme descobri tempos depois —, não tem começo ou fim.
Sou, pois, do time dos pautados.
Fiz inumeráveis programas e todos os meus cursos seguiam um plano. O meu maior medo era o do “branco”: não ter o que dizer diante de uma turma. Com o tempo, os programas foram virando temas jazzísticos servindo de impulso inicial porque os improvisos, atalhos, curvas, cruzamentos e invenções superavam a pauta. A aula foi mais aula quando eu era um jovem mais correto, discreto e preparado, mas — em compensação — menos honesto do que esse velho pautado que sou hoje em dia.
De onde tiro essa licença confessional? Que o leitor releia o meu título. A crônica “caiu” no “último dia” e esse é o dia mais importante do tempo que, diz Thomas Mann, não pode ser cortado a facão.
Todo “último dia” puxa para um “primeiro dia” e ambos são especiais. Marcamos a primeira e a última vez com um gesto, palavra, roupa, comida e objetos que ajudam a esconder reveladoramente a nossa impotência diante das pautas, programas, planos, preces, projetos e receitas que tanto precisamos.
Olhando para trás neste último dia de 2014, eu posso rever alguns “últimos dias dos velhos últimos dias”. Em 1948, virei ginasiano e ganhei uma caneta tinteiro de meu saudoso pai. Em 1950 entrei o ano apaixonado (pela primeira vez) e dele saí com o coração partido. Foi quando descobri que a alma, como a água, tem persistência — ela entorta, mas não quebra. Ao passo que o coração arrebenta-se quando somos derrotados por algum sofrimento. Não me esqueço do ano em que entrei menino e dele saí homem feito, ciente e consciente da sexualidade que, dizem, expulsou Adão e Eva do Éden.
Num outro “último dia”, em 1963, vivi um Natal como os dos filmes de Bing Crosby: a casa da vila estudantil de Harvard coberta de neve e o asfalto negro da rua pintado de branco reluzente. A neve, Deus meu!, caía grossa, mas em silêncio. Num outro “último dia”, eu ganhei um beijo desesperado de uma moça depois de uma Missa do Galo e entendi o conto do velho e glorioso Machado de Assis. Já nesses 2000 eu tenho virado meus últimos dias nas alegrias de sofrimentos não previstos. Foi quando na minha vida entrou o Max Weber das consequências imprevisíveis dos atos que fazemos planejando e sem pensar. Pois nada escapa das cosmologias.
Eu queria poder escrever bonito e brilhante como meus companheiros de jornal, mas não sou bom nisso. Fui como um dia me disse agressivamente um cronista famoso: “um académico”. Ou seja: um bosta que escreve para ser corrigido e, pior que isso, não lido. Quem sabe faz, quem não sabe, ensina.
Como só fiz ensinar, sei que não sei.
Eis uma pobre mensagem para um rico “último dia” de 2014. É, conforme me recordo, de um poema favorito de Manuel Bandeira, a crônica do cavalinho correndo enquanto observa enojado os cavalões comendo.
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma — anoitecendo!
Happy New Year, companheiros!
Roberto DaMatta é antropólogo
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