• Agora temos o ‘gabinete do PMDB’ completo em substituição ao ‘gabinete do PT’
- O Globo
Há uma dinâmica permanente na vida das coletividades, obviamente refletida na vida dos indivíduos, decorrente da própria dinâmica do universo. Essa dinâmica social é a responsável pela mudança sistemática e contínua nos destinos das coletividades e das individualidades. Mudar permanentemente é nosso destino cósmico. Afinal, somos todos parte desse grande todo universal harmônico, muito anterior às nossas ideias. O holos grego que inspirou Hegel, no Ocidente, ou o Tao que inspira o comportamento das coletividades e dos indivíduos, ainda hoje, nas grandes civilizações do Oriente, são dados claríssimos dessa preponderância do todo sobre as partes e do geral sobre o particular nessa dinâmica eterna.
Na política e na economia, portanto, não haveria de ser diferente. Assim, em economia política, trata-se de erro primário não separar o todo das partes ou as causas das consequências para mudar ou reformar. Ou ainda, a estrutura da conjuntura. As causas e a estrutura fazem parte da visão global, taoísta, holista e hegeliana. As consequências e a conjuntura é que podem ser objeto de visão mais particularizada, embora cartesiana e reducionista. Mas se a estrutura está contaminada, dificilmente a conjuntura adversa será controlada. Ou, numa linguagem mais direta e simples: se o todo está podre, obviamente suas partes também estarão deterioradas. E a mudança da conjuntura há de se dar através de corajosas mudanças nas estruturas. As coletividades se movem, assim, como esse todo harmônico, independentemente do comportamento individual.
Basta a observação da movimentação simultânea e imediata de um cardume ou de um bando de pássaros em formação geométrica e instantânea, sem qualquer comando aparente senão a determinante coletiva, para entendermos ser essa submissão do individual ao coletivo nas demais espécies tão emblemática quanto as grandes migrações, guerras, movimentações demográficas e movimentos políticos de massa, no caso humano. As cidades, os estados soberanos e os organismos multilaterais hodiernos, independentemente da administração individual de gestores mais ou menos capazes, líderes políticos, diplomatas ou legisladores, dispõem de autonomia própria grupal ou colegiada precedente e inconsciente. A democracia, nesse sentido, é uma ferramenta organizacional para esse retorno racional e reverente às origens mais remotas da vida biológica e grupal organizada.
Dentro dessa linha de raciocínio científico o parlamentarismo, por se tratar de governo de colegiado, ou coletivo, está muito mais próximo da democracia efetiva e da própria organização racional da sociedade, desde os primórdios da vida política, com os hititas da Anatólia, dois mil anos a.C., ou com o Parlamento de Cromwell muitos séculos mais tarde como contrapeso ao absolutismo inglês. É uma evolução do indivíduo como ser coletivo e plural, do ponto de vista histórico e científico. O sistema presidencialista brasileiro de cooptação (ou coalizão, segundo o cientista político Sérgio Abranches) está esgotado por ser um retrocesso histórico perverso. A Nova República presidencialista de reeleição também faliu.
A saída democrática e realista está exclusivamente nas mãos do poder constituinte e da iniciativa popular das massas cada vez mais perigosamente inconformadas no Brasil. Os superpoderes hoje atribuídos ao Executivo e o calamitoso estado de coisas em que nos encontramos, fruto da teimosia quase doentia e incorrigível de sua ocupante, agravam-se por dois dados históricos singelos, mas maquiavelicamente absurdos. O primeiro foi termos retrocedido, através de plebiscito induzido por gigantesca publicidade à época, em 1962, ao atraso do presidencialismo, quando já tínhamos galgado ao estágio superior do parlamentarismo, tendo tido os nomes de Tancredo Neves, Hermes Lima e Brochado da Rocha como primeiros -ministros. Deu no Golpe de 64. O segundo erro foi a emenda parlamentarista de 1993, por decorrência de ditame constitucional de 1988, ter sido colocada novamente em plebiscito junto com a opção pela monarquia. Claro que não passaria. O resultado desses dois movimentos aí está: um presidente deposto por golpe militar, outro morrendo antes de assumir e deixando um vácuo de legitimidade nas mãos de um vice egresso do autoritarismo. Outro deposto nas ruas com um processo de impeachment.
E a atual, desmoralizada, com o povo pedindo a renúncia ou, novamente, o impeachment. Ou agimos com vigor no sentido da mudança estrutural ou seremos eternamente vítimas das situações conjunturais como a que estamos suportando. Em vez de impeachment, portanto, parlamentarismo.
Será que precisaremos de um novo Raul Pilla para solução tão óbvia? Já vivemos um parlamentarismo “de facto”, principalmente depois da transferência da Secretaria de Relações Institucionais com o Parlamento para o âmbito da Vice-Presidência da República, ele mesmo um egresso desse mesmo Parlamento. Agora temos o “gabinete do PMDB” completo em substituição ao “gabinete do PT”. Por que não oficializá-lo de uma vez? Parlamentarismo já!
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Nelson Paes Leme é cientista político
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