- O Globo
• Há três torneiras bem claras de pura ladroagem de dinheiro público neste escândalo da Petrobras: a dos políticos, a dos empresários e a dos intermediários
“Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamon”.(Mateus, 6-24)
As sociedades contemporâneas, com as honrosas exceções de sempre, vêm perdendo progressivamente o sentido da generosidade, da solidariedade e da fraternidade. A piedade e a caridade se tornaram virtudes em nítida escassez no dia a dia dos indivíduos da nossa triste espécie neste início de milênio. Em contrapartida, o individualismo, a ganância, o egoísmo e o narcisismo passaram a fazer parte de um mundo robotizado e materialista a serviço cada vez mais de Mamon e cada vez menos de Deus. Mamon, como se sabe, é um dos sete príncipes das trevas: o deus-dinheiro na tradição hebraica. O inverso das sandálias franciscanas e do próprio espírito cristão. Ser probo e honesto em nossos dias virou tema de chacota e pilhéria. Mais ou menos como ser republicano e patriota no Brasil desses obscuros tempos que atravessamos.
Toda a concepção ética da nossa sociedade tem sido perversamente distorcida na apologia do ter em detrimento do ser. Ninguém mais é avaliado pelo que é, mas pelo que tem. O consumismo desvairado do supérfluo e sua ostentação despudorada que afronta a miséria dos desvalidos norteiam o inconsciente coletivo em nossos dias. Quanto mais bens materiais acumulados, mais dinheiro aplicado aqui e “lá fora”, nos assim chamados paraísos fiscais, mais representativo e benquisto é o indivíduo nesse mundo falso e dissimulado de Mamon. Por outro lado, os conceitos de justiça, retidão moral e probidade também se encontram totalmente distorcidos, quando não em puro desuso. Quem tem mais, pode mais. Quem tem menos, pode menos. E quem nada tem apodrece em nossas sórdidas e superpopuladas masmorras.
Essa é a lógica perversa desse principado das trevas em que se transformou o mundo ganancioso do império do lucro a qualquer preço em geral e o Brasil lulopetista e flibusteiro em particular. A gigantesca teia de propinas e de corrupção sistêmica nos negócios públicos que está vindo à tona com as investigações na Petrobras e já em outras estatais e fundos de pensão nos conduz à dolorosa conclusão de que o país está entregue ao comando irreversível de Mamon.
A leniência e até a justificação das autoridades constituídas para com os desvios de conduta das lideranças públicas e privadas para abastecimento de “caixas dois de financiamento de campanhas” (esse eufemismo cínico para a roubalheira deslavada, promíscua e generalizada que tomou conta deste desgoverno), tornou-se a regra e não mais a exceção.
Há três torneiras bem claras de pura ladroagem de dinheiro público neste escândalo da Petrobras: a dos políticos, a dos empresários e a dos intermediários. Estes últimos se subdividem em dois tipos demoníacos: os funcionários corruptos indicados por lideranças políticas às quais servem e se associam e os chamados “operadores externos” do perverso esquema. Esses, rapidamente, transformaram-se em delatores-colaboradores porque eram o lado mais frágil da monstruosa engrenagem. Os empresários que formam o restrito “clube” da roubalheira, apodo sórdido e cínico por eles mesmos adotado, constituem a segunda categoria, talvez o lado mais hediondo da questão porque deles depende, em boa parte, significativa parcela do desenvolvimento econômico do país.
Talvez aí esteja realmente assentado solidamente o trono de Mamon com todas as suas mordomias e salamaleques ao poder nefando do dinheiro sujo. Um dinheiro que, subtraído ilegalmente ao Estado, na verdade é diretamente roubado do bolso de todos os brasileiros, especialmente dos menos afortunados. Já os políticos se justificam com a balela do “caixa dois” e sob a cortina de fumaça negra e densa da condenação ao financiamento privado de campanhas, suposta imperfeição da nossa democracia e da nossa legislação eleitoral. Mentira. Não é o financiamento de campanhas o responsável pelo roubo. Rouba-se desde que Jesus Cristo foi crucificado ao lado de dois ladrões, um arrependido e outro não. E não havia naqueles tempos sequer campanhas políticas, quanto mais seu financiamento ou “caixas dois”.
Há também a máxima, já explicitada pelo próprio Lula, de que o “caixa dois” é prática corriqueira. A ministra do STF Cármen Lúcia já pôs fim a essa falácia com breve sentença num de seus votos no mensalão: “Caixa dois é crime!”. Financiamento de campanhas é outra coisa. Em pesquisa encomendada pelo Conselho Federal da OAB ao Instituto Datafolha e realizada em junho de 2015, numa amostragem de 2.125 pessoas, ficou evidente que 74% dos entrevistados são contrários ao financiamento empresarial de partidos e políticos. Em pesquisa anterior, de 2013, constatou-se que 90% da população defende penas mais rigorosas à prática de “caixa dois” com os gastos de campanhas eleitorais. Nos EUA, por exemplo, é livre, ilimitado e privado para os committees, mas muito fiscalizado. Na França é público. Ambas democracias consolidadas. Portanto o mal não está no tipo de financiamento, mas na ladroagem impune e solerte. Simples assim.
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Nelson Paes Leme é cientista político
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