- O Estado de S. Paulo
Não são somente Dilma e Cunha, o PT, o PMDB e o PSDB, a esquerda e a direita, o Executivo e o Legislativo. É tudo.
Tal qual o mar de lama com que a incúria e a busca do lucro fácil destruíram a vida de milhares de pessoas, comprometendo o meio ambiente por décadas, uma lava corrosiva está se espalhando pelo País, a ameaçar o futuro. Há algo de podre no reino. A política simplesmente não funciona.
Para começar, não há governo. O problema não é a presidente, mas o sistema e o modo como se deseja governar. Sua mais perfeita tradução é o Ministério pífio que há em Brasília, sem cabeças talentosas, sem liderança e coordenação, composto só para agradar ao baixo clero do Congresso e fortalecer a base governista. Não é um Ministério com perfil técnico ou político: ele simplesmente não tem perfil. Também não tem um plano de voo para seguir, já que não há programa de governo. O que havia antes, no primeiro mandato de Dilma, e que não era grande coisa, foi literalmente reduzido a pó após as eleições, quando a crise econômica encorpou e passou a ser reconhecida como um castigo dos céus. Jamais se admitiu que a economia desandou porque as opções governamentais foram ruins. A culpa seria das estrelas, e dos outros. Por isso, que se pague a penitência do ajuste fiscal.
Neste cenário de horrores, seria de esperar que o Congresso Nacional se enchesse de brios e fizesse sua parte. Que os melhores se destacassem nele. Que pressionassem o governo, o obrigassem a agir, nutrindo-o com críticas e ajudando-o a enfrentar com determinação os problemas. É para isso que existem deputados e senadores. Mas o Congresso se encolheu miseravelmente. Passou a assistir impassível, com alguns arroubos de indignação seletiva, à sua própria conversão numa instituição desprezada pela população, que não se sacrifica pela Nação, pouco faz de produtivo. Chegou ao ponto de permitir que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, sujo até o último fio de cabelo, pose como um Maquiavel de província e deboche da Nação, equilibrando-se na indiferença das oposições e no apoio mal disfarçado de Lula e do governo.
O cenário seria perfeito para as oposições mostrarem sua cara e seus recursos, suas propostas, sua “narrativa”. E o que se viu? Silêncio total, entremeado por algumas vozes isoladas, impotentes, que não se fazem ouvir. As oposições simplesmente se entregaram ao jogo do poder – à pequena política –, deixando por terra sua identidade, suas glórias e tradições.
Cidadãos foram às ruas protestar. Encheram algumas praças e avenidas de diversas capitais, mas foram a pouco e pouco perdendo fôlego. Ressentiram-se precisamente da ausência da política. Foram “liderados” por pequenos grupos de ativistas e por alguns políticos verborrágicos, sem talento, com a faca nos dentes. Os cidadãos perceberam que naquele festival de bobagens reacionárias – em que não faltaram pessoas armadas e apelos patéticos aos militares – não encontrariam nenhuma saída.
Sem política – cabeça política, educação política, articulação política –, as ruas não puderam levar uma palavra de lucidez para o sistema político e a Presidência da República.
Enquanto isso transcorria nos vértices inoperantes do sistema, as reformas de que o País necessita foram sendo travadas, travando o conjunto. É muito mais que ajuste fiscal. A questão urbana é lancinante, em termos de habitação, segurança e mobilidade. A questão energética atingiu nível emergencial e a manutenção da matriz atual produz tragédias sucessivas, destrói florestas e prejudica populações inteiras. Ninguém mais fala de reforma política. A desigualdade lateja. O SUS, nosso maior patrimônio na área da saúde, parece abandonado. E estamos longe de ter conseguido equacionar a mais importante de todas as questões, a educação. O ensino deixa a desejar, a privatização avança, a escola pública derrapa e não recebe tratamento à altura da parte dos governos, que preferem tratá-la pelo lado do custo. A educação não se converte em causa nacional, suprapartidária, em questão de Estado, para prejuízo de milhões de jovens e o represamento da inteligência nacional.
Nesta última semana, o circo pegou fogo de vez. É provável que continue a queimar até 2018, pois o sistema está tão em crise que não consegue gerir nenhuma crise. Mas o ineditismo dos últimos acontecimentos, a gravíssima prisão de um senador, líder do governo, autorizada pelo STF, tem força para fazer com que os melhores políticos se movimentem. Foi uma bofetada.
Quando as coisas atingem grau máximo de degradação, espera-se que comecem a ser forjadas as soluções. O PSDB já está a rever sua conduta. O Senado consegue discutir e avaliar sem corporativismo a prisão de um de seus cardeais e por esmagadora maioria autoriza a continuidade das investigações contra ele. Reposiciona-se, corta na própria carne. Na Câmara, o Conselho de Ética aperta o cerco em torno de Eduardo Cunha, que se desmoraliza. Um banqueiro e um pecuarista – íntimos dos altos círculos políticos da República – são presos, acusados de corrupção e tráfico de influência. Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário dão sinais seguidos de que o círculo continuará a se fechar.
Não é pouca coisa para um único ano. Eppur si muove? Não dá para saber, mas a dinâmica alucinante do quadro está a criar sucessivas oportunidades para reformulações.
Pode ser que alguma luz se acenda no Planalto, vinda, quem sabe, de algum juiz ou dos pequenos partidos de oposição, o PSOL, a Rede, o PPS, o PSB. Pode até mesmo acontecer de alguns morubixabas se reunirem para estender a mão a Dilma e apoiá-la numa recomposição governamental séria. Os partidos não estão mortos. Podem render mais, recuperar sua vocação e sair da letargia.
Não é razoável que da gravíssima crise em que está o País não surja uma bandeira para que se reorganizem a sociedade e o Estado.
-------------------------------
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais (Neai) da Unesp
Nenhum comentário:
Postar um comentário