- O Globo
• O secundário consiste na manobra conduzida pelo PT e setores do PMDB de não inabilitar a presidente afastada definitivamente
Terminou o longo e penoso ciclo de poder petista. Após 13 anos, o país, enfim, acordou, podendo ver uma realidade que lhe era subtraída. O peso da ficção e da ideologia impediam ver tudo o que estava, contudo, aí! A agora ex-presidente, com sua soberba, foi o triste — e muitas vezes ridículo — epílogo deste período. O Brasil foi a sua vítima.
O profeta da salvação revelou-se um farsante! A promessa de redenção dos pobres levou a um desemprego de aproximadamente 12 milhões de pessoas, que, em um certo dia, acreditaram na ficção de um discurso, cujos maiores beneficiários foram o PT e as suas empreiteiras. Muitos enriqueceram, enquanto outros, na sociedade, já não mais tinham do que viver. Uns falavam em nome dos pobres, enquanto estes ficavam sem dicção.
Lula, o Criador, gabava-se de eleger um poste, também denominado criatura. Cioso de sua onipotência fez com que aos pés deste país se abrisse um abismo, o da recessão, o da queda abrupta de renda, o da inflação que corrói os salários, o da desestruturação do Estado, o do sucateamento da Petrobras, privatizada partidariamente e assim por diante. Para muitos, a ascensão do PT ao Poder foi como um sonho, a sua realização um poderoso pesadelo.
No atual contexto, o de aprovação do impeachment da agora ex-presidente Dilma, deve-se ter em vista que este é o fato essencial, não devendo a visão ser obscurecida pelas artimanhas de último minuto que não a inabilitaram para o exercício de cargos públicos. O principal não pode ceder lugar ao secundário.
De alguns senadores tudo se pode esperar, menos a preocupação com o bem coletivo, algo exposto pelo fatiamento bizarro de um artigo constitucional. É como se a Constituição fosse um bolo do qual se poderia cortar fatias à conveniência de alguns que se pretendem poderosos ou simplesmente gulosos!
A presidente foi apeada do poder, assumindo constitucionalmente o vicepresidente, no exercício pleno de suas funções. Fecha-se um ciclo, abre-se um novo. Eis o foco do qual não podemos nos desviar. O ganho é imenso! Há apenas um ano, poucos foram os que estavam convencidos de que o PT seria, conforme todas as leis deste país, afastado do poder.
O diferencial reside, neste momento, em que o novo presidente deverá continuar perseverando em uma mudança da política econômica e das políticas públicas em geral, mostrando que um novo país é possível. Suas sinalizações já foram muito positivas, faltando-lhes, ainda, a sua concretização em um futuro próximo. Vários projetos de lei e emendas constitucionais já se encontram no Congresso e outros deverão ser enviadas em breve espaço de tempo, como os das reformas previdenciária e trabalhista.
O Brasil não pode mais conviver com o descalabro e a herança petistas. A manifestação pública de Michel Temer, assumindo o compromisso com essas reformas e propugnando por uma pacificação nacional, são expressões claras de que o país caminha para uma transformação decisiva, sem que se perca a percepção de que este caminho está cheio de percalços e armadilhas. Algumas delas foram bem armadas, como a do aumento salarial para vários setores do funcionalismo público quando, em contraste, quase 12 milhões de pessoas estão desempregadas.
O secundário consiste na manobra conduzida pelo PT e por setores do PMDB, capitaneados pelos senadores Renan Calheiros e Kátia Abreu, de não inabilitar a presidente definitivamente afastada para assumir cargos públicos. O objetivo da manobra residiu em aliviar a pena da ex-presidente, em um prenúncio, perigoso, de que a mesma “interpretação” possa ser eventualmente aplicada a condenados pela Lava Jato.
Eis uma amostra dos obstáculos que o presidente Temer terá de enfrentar, quando os setores menos qualificados do Senado e da Câmara se insurgirem contra qualquer proposta governamental. Aparentemente, dir-se-ão, por exemplo, defensores de determinados “direitos sociais”, quando, na verdade, estarão atendendo a interesses corporativos e aos seus próprios. Barganhas dos mais diferentes tipos continuarão a aparecer, no molde desta entre o PT e setores do PMDB, sempre em contra dos interesses da nação.
Um exemplo particularmente ilustrativo foi o de uma senadora que produziu uma esquisita “justificativa”, a de que a presidente não deveria ser inabilitada para o exercício de cargos públicos por não poder viver com um rendimento de R$5.000. O discurso foi piegas e teve como suposto argumento o de que a condenação, se não fatiada, seria uma “injustiça”. Estranha noção de injustiça.
O absurdo é visível: uma criminosa por responsabilidade fiscal, responsável pela maior crise recente da história brasileira, com o país arruinado, estaria sendo tratada “injustamente”. Nem uma palavra sobre os milhões de brasileiros que tiveram redução salarial ou lutam para sobreviver e para quem viver com R$ 5.000 reais seria um sonho. Estes sim foram tratados injustamente pelo conjunto da obra petista e, em particular, pela presidente que ora se afasta.
A inversão é total: a responsável por esta calamidade não deveria ser injustamente responsabilizada!
A ex-presidente Dilma, se possui problemas econômicos, poderia procurar emprego nas empresas favorecidas por seu governo. Deveria, isto sim, ser por elas recompensada, graças aos lucros que viabilizou. Empreiteiros poderiam empregá-la, claro que, agora, sem o pagamento de propinas, que irrigava os seus cofres. Deveria ser contratada por sua “competência” administrativa.
O mesmo valeria para alguns bancos que eram recebidos no Palácio do Planalto com tapete vermelho e indicavam ministros da área econômica. Os seus dirigentes eram tratados com o maior esmero. Seria, aliás, o momento da retribuição e da recompensa.
Injusto é o contribuinte pagar por mais esta falta de decoro de senadores, comprometidos com salvar a cara da corrução petista e da ruína produzida pela ex-presidente Dilma.
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Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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