Entrevista do professor e cientista político Marcus Melo (UFPE)
Por Cristian Klein - Valor Econômico
A seguir, os principais momentos da entrevista ao Valor:
Valor: Que ameaças há à maioria legislativa de Michel Temer?
Marcus Melo: O que importa para o governo aprovar a sua agenda é sua capacidade de gerenciar uma coalizão. Malgrado a elevadíssima fragmentação partidária, o governo Temer tem sido bem-sucedido em mobilizar uma base de apoio parlamentar. Isto tem sido possível porque a coalizão que lhe dá sustentação é a mais homogênea ideologicamente desde o governo Cardoso; possui a mais elevada taxa de coalescência (congruência entre tamanho das bancadas partidárias e ministérios controlados) desde o governo Collor; e a menor taxa de concentração de ministérios no partido do presidente desde o governo Sarney. Cooperar com o governo é a estratégia dominante do parlamentar médio, já que não há opção rival. A defecção do Centrão no governo Dilma ocorreu porque havia uma alternativa que se mostrou melhor do que o apoio quando a queda do governo tornou-se iminente. Caso Temer torne-se muito impopular, o comportamento legislativo oportunista irá se exacerbar mas seu governo provavelmente não irá cair.
Valor: Setores tolerantes na cobrança ao governo por ajuste fiscal, como o mercado financeiro e a indústria, tendem a redobrar pressão ou permanecerão condescendentes com as dificuldades de reforma?
Melo: Como mostrei em meu livro sobre as reformas constitucionais no Brasil, como ator coletivo o empresariado é débil no país: as megamobilizações por reformas (inclusive tributárias e da previdência social) que ocorreram no início dos anos 1990 e em 1997 deram com burros n'água. A Fiesp foi contra o Plano Real. As reformas são bens públicos que têm custos distintos para os diversos atores envolvidos gerando assim uma "guerra de atrito" entre os jogadores que formam coalizões para externalizar esses custos. As reformas viáveis são as que implicam em custos lineares para todos os envolvidos. O problema maior das reformas no momento é que ainda não há um senso de urgência, como ocorre em situações de crise hiperinflacionária ou crise de balanço de pagamentos. Talvez as coisas precisem piorar para gerar esse senso de emergência que deflagre reformas. A crise nos Estados pode ou não vir a ser esse catalisador porque há espaço para paliativos.
Valor: Qual o destino do PT, caso Lula não concorra em 2018? Os pouco mais de dois anos de Michel Temer consolidarão o esvaziamento da polarização PT x PSDB?
Melo: A literatura comparada mostra que os partidos entram em colapso quando ocorre processos intensos de diluição da marca ou rótulo partidário. Isso ocorre quando o partido torna-se indistinguível dos demais por inconsistência e/ou adoção de políticas e práticas comuns a outros partidos. As lealdades partidárias se dissolvem e os apoiadores passam a avaliar o desempenho do partido no curto prazo, como é típico de eleitores voláteis ("swing voters"), em contraste com os eleitores do núcleo duro de apoiadores. A combinação desses dois fatores - convergência de práticas e políticas e má avaliação do desempenho - pode ser devastador como mostra a experiência na América Latina de partidos outrora muito fortes como o Apra no Peru, UCR na Argentina ou AD na Venezuela. O PT defronta-se com esse dilema: adotou políticas macroeconômicas de seus adversários e práticas de corrupção que denunciava nos outros partidos. A imagem de "partido dos setores pobres" foi abalada pelas revelações das relações promíscuas com o alto empresariado. A tentativa do partido de se distanciar da Dilma é estratégia para "controle de danos" da erosão causada pela inconsistência programática, mas o golpe está sendo muito duro. Ao deixar de ser governo no plano federal e subnacional, os recursos organizacionais do PT sofrerão impacto devastador. O caso brasileiro é singular porque a "débâcle" é não só de um partido, mas do próprio sistema partidário, que são coisas distintas. Essa fragmentação também afeta o PSDB, porque a competição política polarizada vertebrava o sistema.
Valor: De que maneira a permanência da Lava-Jato pode afetar o governo federal?
Melo: O governo Temer enfrenta o que se chama "risco binário": as chances de sucesso ou fracasso são elevadas e simétricas. É um governo sob a espada de Dâmocles: o governo pode naufragar por revelações potencialmente devastadoras da Lava Jato. Mas também pode não acontecer nada. A resposta do governo aos escândalos tem sido rápida até ao presente. A rigor todo o processo político da derrocada do governo Dilma foi marcado pela elevada incerteza produzida pela forte autonomia de que gozam as instituições judiciais e de controle. Ela marcou a barganha política entre Dilma e Eduardo Cunha, por exemplo, inviabilizando acordos pela incapacidade desses atores em oferecer mutuamente promessas críveis. Como Dilma não conseguia barrar a Lava-Jato, ela não poderia chegar a um acordo com Cunha. Com a prisão de Delcídio e a descoberta das suas contas na Suíça, ele percebeu que iria cair e acionou a bomba atômica do impeachment, pensada apenas como instrumento de dissuasão.
Valor: Que imagem o impeachment terá na história: a de um golpe ou de um processo legítimo de substituição do presidente?
Melo: A narrativa que irá prevalecer depende do desenlace de alguns eventos ainda em curso, como o processo que o presidente Lula deverá enfrentar, as delações premiadas da Odebrecht e OAS, e o julgamento dos parlamentares envolvidos. Provavelmente esses processos não sofrerão descontinuidade e as evidências que virão à baila poderão enfraquecer a imagem da presidente. Graças a Cunha o discurso do golpe adquiriu força: por ser o algoz-réu, e, sobretudo, por ter restringido os termos da aceitação da denúncia às questões fiscais já que os fatos denunciados na Lava-Jato também o atingiria. O PT se apega ao ponto do golpe porque a vitimização é única "estratégia de saída" em quadro de crise aguda do partido. Mas apenas os eleitores do núcleo duro do partido são mobilizados por esse argumento: para os chamados "swing voters" (eleitores sem lealdade partidária e que votam com o bolso) seu apelo é mínimo.
Valor: Como um pacto, com anistia e reação legislativa à Lava-Jato, seria recebido pela população?
Melo: Acredito que haveria enorme reação pública a qualquer movimento para garantir impunidades aos agentes envolvidos na Lava-Jato. As instituições judiciais e parajudiciais e suas associações representativas certamente cumprirão um papel importante na mobilização da população. No entanto, a probabilidade de algum desses cenários ocorrer é muito baixa: o próprio Judiciário atuará para inviabilizá-lo.
Valor: Quais os custos e benefícios para o PSDB ao apoiar Temer? Que papel terá o Centrão na formatação da sucessão de 2018?
Melo: O Centrão não tem protagonismo político no sentido de pautar a política. É essencialmente reativo e opera segundo uma lógica rentista vis-à-vis os governos de turno. Sairá muito enfraquecido após a provável cassação do Cunha. Temer é governo "caretaker": não tem lua de mel presidencial e ao mesmo tempo é um pato manco ("lame duck"). Não ser candidato à reeleição enfraqueceria em princípio o Executivo, mas como essa promessa não é crível, aumenta a incerteza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário