- Valor Econômico
• As etapas de campanha se fundiram de maneira caótica
Parece que foi no século passado, mas faz pouco mais de um ano que a Câmara dos Deputados aprovou a reforma eleitoral que decidiu as regras das eleições municipais em curso. Parece de outro século a proposta do distritão, defendida com afinco pelo então articulador político do governo Dilma, o então vice-presidente Michel Temer. Era uma proposta que transformava cada Estado em um distrito, considerando eleitas as candidaturas mais votadas, independentemente da votação global de seus próprios partidos. Parece ter-se perdido no tempo a manobra de Eduardo Cunha para jogar no lixo o relatório do deputado Marcelo Castro na comissão que examinava a reforma e fazer com que o aliado Rodrigo Maia, hoje presidente da Câmara, levasse diretamente ao plenário a versão do texto que queria ver aprovada.
Os dispositivos que regem hoje a eleição municipal foram muito modificados ou mesmo engavetados desde a aprovação na Câmara. Mas muita coisa ficou. Há questões técnicas bastante complicadas e de impacto relevante como a modificação no método de preenchimento das vagas por partidos que tenham alcançado o quociente eleitoral. Mas, sobretudo, serão marcantes a redução do tempo de campanha e da propaganda eleitoral, conjugadas à proibição de financiamento empresarial e à ausência de limite para que candidatos financiem suas próprias campanhas.
No seu todo, o resultado da reforma eleitoral de 2015 foi transformar uma maratona de 5 km em uma prova de velocidade de 400 metros. Em dois turnos de 200 metros, muitas vezes. Não bastasse isso, a votação do impeachment no Senado e seus efeitos engoliu quase 10 dias dos 35 reservados ao período de propaganda eleitoral. Uma campanha que costumava durar 90 dias e uma propaganda eleitoral de 45 dias foram reduzidas a algo como quatro semanas.
Essas mudanças drásticas aboliram o tipo de dinâmica que costuma se observar em uma eleição. Antes, o longo percurso permitia executar com planejamento tarefas básicas, adequadas a cada tipo de candidatura. Em um primeiro momento, líderes nas pesquisas não fazem marola, desconhecidos usam o tempo para se apresentar, conhecidos com alta rejeição fazem campanhas de amaciamento da imagem, candidatos à reeleição defendem suas administrações. Mas, sobretudo, a etapa fundamental era a seguinte, a da desconstrução cirúrgica dos adversários mais diretos. Era uma etapa com várias fases. Mudava de objeto conforme se movia a gangorra das pesquisas.
Com a diminuição do percurso, não há mais tempo para tudo isso. As etapas se fundiram de maneira caótica. Líderes nas pesquisas com boa vantagem são deixados de lado, a não ser no caso raro de serem candidatos à reeleição em posição de favoritismo. Campanhas para baixar rejeição se mesclam a ataques e a efetiva etapa de desconstrução parece ter ficado para o segundo turno. Com o encurtamento da campanha, as candidaturas concentram suas forças em se digladiar pela segunda colocação.
Antes, por mais fragmentado que fosse o sistema, as cúpulas partidárias acompanhavam de perto a gangorra das pesquisas e faziam correções de rota no financiamento privado das campanhas, conforme certa visão estratégica de conjunto. Hoje, esses recursos de financiamento não estão mais disponíveis. Para completar, os próprios partidos estão em processo de fragmentação interna, perderam quase que totalmente sua capacidade de coordenação. Simplesmente não conseguem mais a unidade exigida para uma ação estratégica de conjunto.
Eram coisas como coordenação partidária e longas estratégias de campanha que permitiam que, ao final, a gangorra pendesse para o lado de partidos maiores e mais consolidados. Mesmo que, terminada a apuração, o número de partidos que concentravam a maior quantidade de prefeituras conquistadas fosse ainda muito alto, ele acabava coincidindo com o ranking partidário vigente. Mesmo contando com alguma capacidade de coordenação nas cidades em que haverá segundo turno, é difícil deixar de suspeitar que o resultado será uma fragmentação ainda mais acentuada.
A maior diferença em relação a qualquer outra eleição municipal anterior é o aumento da indefinição em relação a 2018. Passadas as eleições municipais, o sistema costumava dar um tempo para aplacar as mágoas e lamber as feridas e depois retomava as negociações em vista de seus projetos estratégicos. Tudo indica que esse período de consolidação até 2018 será bem diferente. Se o sistema não for capaz de produzir algum tipo de concentração partidária, seja na legislação eleitoral, seja mediante a formação de frentes, 2018 terá definitivamente a cara de 1989.
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Michel Temer passou recibo de viva voz de que não controla sua própria base. Insiste em confirmar de moto-próprio que a estratégia da nova oposição de deslegitimar seu governo como golpista está funcionando e que isso o incomoda maximamente. É como se convocasse da cabeceira da sua reunião ministerial novas levas de protestos.
Parece impossível esperar que o sistema político tenha aprendido com Junho de 2013 o risco que corre ao arrancar cartazes de pessoas em estádios e atirar bombas e balas contra ruas cheias do combustível inflamável da indignação. Mas pelo menos deveria ser possível a Temer compreender que existe algo ainda mais grave do que a alta rejeição que o atinge e a seu governo, confirmada em pesquisas recentes.
Mesmo que as eleições municipais façam diminuir os protestos, mesmo que a tática de repressão seja bem sucedida em desmobilizar as manifestações, mesmo que nada semelhante a Junho se repita, o que é hoje apenas rejeição pode facilmente se transformar em ódio. Não é necessária nenhuma particular virtude democrática para entender isso, apenas instinto de preservação. Ou pelo menos assim pensava um eminente diplomata, há quase 500 anos, ao aconselhar o governante que quisesse se manter no poder: "Não deve deixar de se fazer temer, de tal maneira que, não conquistando o amor, evite o ódio".
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
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