- O Globo
9/11 (de 2016), 11/9 (de 2001). Os espíritos cabalísticos já registraram a conexão entre o Dia de Trump e a data dos atentados às Torres Gêmeas. Mais que numerologia, o traço que os aproxima é a entropia: triunfos da desordem. O 11/9 assinalou, apocalipticamente, a ruptura do otimismo que se seguiu à dissolução da Guerra Fria. O 9/11 entra para o registro histórico como uma tripla ruptura da ordem.
A vitória de Trump representa uma inflexão decisiva na crise que devasta o sistema político americano. Os sintomas dessa crise emergiram há oito anos, com o entusiasmo colossal pela candidatura de Barack Obama (“Yes, we can”), que prometia mudar a morfologia do “fazer político” nos EUA, e saltaram novamente dos subterrâneos tanto nas primárias democratas como nas republicanas, personificadas em Bernie Sanders e Donald Trump, os outsiders de esquerda e direita.
No seu improvisado, peripatético, discurso de vitória, Trump falou como líder de um “movimento”, não de um partido — e de um “movimento” que prosseguirá, com ele na Casa Branca. O trumpismo varreu o mapa dos Apalaches e do Meio-Oeste, destruindo as bases democratas fincadas lá atrás, na década de 1930, pelo New Deal de Franklin D. Roosevelt, entre os trabalhadores brancos das regiões industriais tradicionais. O Partido Democratas está em frangalhos — mas o Partido Republicano também. No rumo da Casa Branca, Trump humilhou toda a elite política republicana e implodiu o programa clássico dos conservadores.
A crise do sistema político não gerou um terceiro partido: quebrou por dentro os dois partidos históricos. Na paisagem, restam ruínas e estilhaços. Um mundo de certezas ruiu numa noite.
“America first”: Trump prometeu repelir a Parceria Transpacífica (TPP) costurada por Barack Obama, desmontar o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) criado por Bill Clinton e impor tarifas punitivas aos bens importados da China e do México. O programa ultraprotecionista não precisa ser cumprido por inteiro: basta uma parte dele para remover pilares fundamentais da ordem aberta que sustenta a economia mundial.
Na Conferência de Bretton Woods (1944), um ano antes das explosões derradeiras da Segunda Guerra Mundial, os EUA assentaram os alicerces da ordem econômica ocidental. A reversão protecionista trumpiana significará a renúncia da maior potência do mundo aos princípios de Bretton Woods. Seguindo a trilha que anunciou, Trump semeará guerras comerciais com a China, ameaçará a estabilidade do México e sabotará a precária recuperação global. No processo, jogará pedras nas engrenagens do motor de inovação tecnológica americana. O triunfo do trumpismo, que se segue ao Brexit, representa um novo passo na desconstrução da globalização.
Trump não inventou o isolacionismo americano. O conceito de uma “fortaleza América”, fechada no seu casulo insular, predominou na primeira metade do século XX. O impulso do engajamento internacional substituiu o isolacionismo apenas depois de Pearl Harbor, expandindo-se com a deflagração da Guerra Fria. A ordem do pós-guerra foi arquitetada essencialmente pelos EUA, coagulando-se numa extensa rede de instituições e tratados. A vitória do trumpismo anuncia um arrependimento: a maior potência mundial vira de costas para o mundo que inventou.
Na campanha, Trump manifestou desprezo pela ONU e pela Otan, prometeu denunciar o acordo nuclear com o Irã, explicou que o programa nuclear norte-coreano é problema do Japão e da Coreia do Sul, deu de ombros para as intervenções russas na Ucrânia e na Síria. A retirada da superpotência abrirá vácuos de poder ainda maiores no Oriente Médio, no Extremo Oriente e na Europa centrooriental, que serão preenchidos pelas potências regionais. Uma ordem geopolítica já abalada conhecerá solavancos sucessivos, em meio a irrupções de anarquia. O trumpismo acelerará as tendências hobbesianas, caóticas, do sistema internacional.
Não é um raio no céu claro. O 9/11 nasceu no 11/9 — ou melhor, na desastrosa reação de George W. Bush aos atentados contra as Torres Gêmeas. “Make America great again”: poucas coisas são mais perigosas que a retração de uma superpotência ao casulo do nacionalismo.
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