Os Estados Unidos elegeram como seu presidente alguém que, a julgar pelo que disse e fez em sua campanha, despreza profundamente a democracia. É claro que, uma vez no poder, Donald John Trump pode se revelar mais pragmático do que se mostrou nos palanques, porque, afinal, o inquilino da Casa Branca não pode tudo, e terá pela frente as instituições que são o contrapeso do Executivo. Mas uma eleição em que o grande derrotado foi o establishment político, cujo vigor é sintoma de saúde democrática, lança os Estados Unidos em uma aventura de resultados imprevisíveis.
Fossem os Estados Unidos uma república bananeira, o desfecho eleitoral seria danoso apenas para seus infelizes habitantes. Mas é desse país que depende grande parte da segurança internacional e da estabilidade econômica global. Um passo em falso do governo americano, por voluntarismo ou por uma visão estreita das relações internacionais, pode arrastar o resto do mundo para uma turbulência que só interessa aos inconsequentes e aos inimigos dos valores ocidentais. Não há razões para otimismo.
Na campanha, Trump se comprometeu a rasgar o acordo que suspendeu o programa nuclear do Irã e a rever a participação americana na Otan. Além disso, disse que o Nafta – acordo de livre-comércio entre Estados Unidos, México e Canadá – “destruiu nosso país”. E prometeu lançar uma guerra comercial contra a China para mostrar que os Estados Unidos “não estão mais de brincadeira”. Para culminar, garantiu que iria “cancelar” o acordo de Paris sobre o clima, por ser “contrário ao interesse nacional”. Não há nada em sua anunciada política externa que não represente uma temerária ruptura dos compromissos assumidos pelos Estados Unidos como principal liderança política ocidental, algo que jamais ocorreu desde que o país se transformou em superpotência, nem mesmo nos períodos em que pendeu para o isolacionismo.
No plano interno, Trump, cujo principal trunfo era se apresentar como alguém que jamais foi político ou ocupou algum cargo público, dirigiu um forte apelo aos “esquecidos”. Quanto mais Trump era atacado por suas diatribes racistas, misóginas e contra os imigrantes, mais seus eleitores pareciam convencidos de que o magnata era mesmo quem dizia ser: um homem independente, que veio para desafiar a estrutura política e econômica que, segundo ele denunciou, havia permitido que os Estados Unidos se tornassem “um lixão onde outros países despejam seus problemas”.
Assim, Trump se tornou uma espécie de herói de uma parcela dos americanos frustrada com a política e com a democracia representativa, e ele se comportou exatamente como esses eleitores esperavam, ao não se dobrar nem aos apelos de seus correligionários republicanos para que temperasse suas palavras. Até para o Partido Republicano, há tempos tomado por uma direita raivosa, o palavrório de Trump era um pouco demais.
A vitória de Trump, contudo, não pode ser vista como surpreendente. Na campanha de 2008, o então candidato Barack Obama, num encontro com doadores eleitorais, já havia salientado que havia desemprego crônico em várias regiões do país e nenhuma administração, em décadas, tinha sido capaz de mudar esse quadro, razão pela qual seus moradores “se tornaram amargos, se agarraram às armas e à religião e se tornaram antipáticos às pessoas que não são como eles”. Além do desemprego, outros sintomas de patologia social surgiram em setores cada vez mais amplos da sociedade norte-americana. Exclusão e isolamento, além do nacionalismo exacerbado, passaram a ser sentimentos predominantes nesses segmentos. Pode-se dizer que Trump deu a essa gente a sensação de pertencer a uma comunidade – a dos que odeiam tudo o que não lhes pareça legitimamente “americano”.
É o líder desses americanos que assumirá a presidência dos Estados Unidos no próximo dia 20 de janeiro. Em seu primeiro discurso depois de eleito, Trump moderou o tom e prometeu que governará para todos os americanos. Como a mentira descarada foi sua principal arma eleitoral, é difícil saber se ele está sendo honesto. O que se sabe é que ele não apresentou nada que o credenciasse a ocupar o cargo político mais importante do mundo, além de exímio manejo dos vícios da demagogia e do populismo. Deus salve a América!
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