- O Estado de S. Paulo
Não há como fingir que está tudo normal. Não está: a República encontra-se em estado de sofrimento. Poderes apodrecem e autoridades institucionais estão sendo largadas ao léu. Entre o Estado democrático de direito e o sistema político há pouca harmonia e muita disjunção, como se faltasse algo.
O sistema político faz água, ameaça enfartar em cada curva do caminho. Falta-lhe quase tudo para funcionar de modo satisfatório: partidos com capacidade operacional, rumos a seguir, centros de coordenação e lideranças. Está ilhado, isolado da sociedade, atraindo críticas e vaias em abundância, pagando até mesmo um preço alto demais, como se fosse, em bloco, um agregado monocromático de canalhas e pessoas desqualificadas.
A política, que deveria coroar o sistema e dar-lhe vida, reverberando a Constituição e as boas práticas republicanas, foi empurrada para a margem.
A crise institucional é real, ainda que não se deva exagerar no diagnóstico. O paciente não é terminal, e ainda tem combustível para queimar. Mas o mal-estar entre as instituições é flagrante e se acentua a cada dia. O sistema balança e ameaça ruir ao sabor de uma brisa qualquer, um sopro leve. Pequenas marolas, que na “normalidade” seriam contornáveis com facilidade, provocam tsunamis perturbadores.
Legislativo, Executivo e Judiciário parecem não falar mais a mesma língua. Vivem trombando, cooperam pouco, competem demais. A crise derivada desse excesso de ruído e atrito, ao se reproduzir, espalha confusão por todos os lados, mina o pouco que há de confiança, corrói a esperança dos cidadãos e alimenta uma exasperação social que termina por se voltar sobre a própria crise, tornando-se componente dela e a impulsionando. As instituições basilares da República funcionam aos trancos, por espasmos, flertando com o improviso.
O “sangue nos olhos” contamina a sociedade civil, mina a solidariedade, a moderação e a serenidade. A indignação e a vontade social de que a justiça seja feita custe o que custar são, em momentos de crise como o atual, o maior inimigo da solução, até porque nascem de uma visão maniqueísta que vê o político – a dimensão sistêmica da política – como mal maior e a Justiça, como panaceia universal.
É por isso que, quando o STF se põe como guardião do poder moderador e contaria expectativas sociais de justiça, o mundo parece desabar e muitos brasileiros incrementam a raiva e a indignação.
Veja-se o último episódio. O açodamento de um juiz combina-se com a desobediência de um senador a um mandado judicial, e ambos, abraçados, mas de costas, quase põem fogo na República. A reação do STF foi sábia, mas onerosa para a institucionalidade e para a própria imagem do Tribunal. Reduziu Renan Calheiros ao devido lugar (a lateralidade, a impotência) e enquadrou Marco Aurélio Mello, mostrando a força de uma decisão coletiva, de um Colegiado. Foi o que se pôde fazer no curto espaço de dois dias e num quadro de extraordinária instabilidade.
Podemos todos gritar e espernear, com maior ou menor razão, com argumentos mais sofisticados ou menos, mas a verdade é que se apagou um incêndio, que só interessava aos que apreciam as altas temperaturas, acreditando que elas derretem as portas que vedam o futuro. No calor da exasperação, poucos percebem que o fogo só serve para queimar esperanças.
Como o clima é de exasperação e de má vontade com os tempos longos e complexos da política, como o clima é de crise da política e não só do sistema, como o clima é de aposta cega na função punitiva da Justiça, e não na sua função reguladora, compreende-se a irritação de tanta gente com os acontecimentos.
O ideal seria ir com calma. A pequena política está encurralada, terá de se reformular e poderá, nessa operação, ser ultrapassada pela grande política. Renan Calheiros expressa cada vez mais os estertores do pequeno mundo que, por erros e distrações acumulados pelos democratas progressistas, se assenhoreou do grande mundo e o submeteu a si.
Mas não se está andando para trás. Crises são também oportunidades: provocam terremotos, mas ensinam, ajudando a que se perceba o que pode ser descartado e o que atrapalha. Nunca como nos últimos anos se prendeu tanta gente graúda. A impunidade não está instituída. Ao contrário, regride de forma acelerada. Sabemos que a política precisa ser reformada. Aprendemos que a “responsabilidade fiscal” não é um garrote neoliberal. Bem ou mal, a democracia persiste e mostra suas vantagens.
A política não é preponderantemente luta pelo poder e muito menos luta para usar o poder em favor de interesses privados. Temos de nos empenhar para que vença a política como exercício de moderação e interesse coletivo. Ela tem sido muito pouco praticada por aqui. Mas não morreu.
O pior da crise não é a ruindade dos operadores, o personalismo exacerbado, a ausência de um mapa a ser seguido ou o conflito entre as instituições. É que não se consegue ver quem se qualificará para desatar o nó.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política na Unesp
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