- O Globo
Nesta fase de transição que estamos vivendo, sem saber ao certo aonde vamos parar, a cena política está embaralhada por percepções misturadas, e o país vai ficando um pouco menor. Há um espírito novo nas ruas, e na atuação da Lava-Jato que aponta para dias melhores, com o estabelecimento de linhas claras que não podem ser ultrapassadas no trato da coisa pública.
Mas há ainda, enraizado e persistente, um pensamento rançoso, ultrapassado em sua validade, mas que, no entanto, ainda predomina em setores da sociedade. A insegurança é tamanha que é possível verificar que o mesmo cidadão que quer a saída de Renan Calheiros da presidência do Senado entende a decisão do Supremo de preservá-lo no cargo em nome de um objetivo maior, que seria a aprovação de importantes reformas no Congresso.
Há várias desculpas para isso: são apenas alguns dias de fato na presidência, depois vem o recesso, e tudo se resolve. O julgamento da ADPF ainda não terminou, como alegou o ministro Teori Zavascki, e por isso não cabe a liminar. Não havia periculum in mora (perigo da demora), isto é, não havia urgência, e por isso a liminar era tecnicamente inválida.
Mesmo os ministros do Supremo ficaram paralisados diante da reação inusitada de Renan Calheiros, recusando-se a receber a intimação do oficial de Justiça. Não ocorreu a nenhum deles que aquele gesto, além de péssimo exemplo — ontem já um prefeito recusou-se a receber uma intimação, citando o caso de Renan —, é uma afronta à Justiça irremediável.
E também não houve quem pensasse o oposto: o perigo de demora existia, na medida em que o senador Renan Calheiros não poderia permanecer na presidência do Senado um dia sequer depois de tornado réu, sob pena de transformar, como transformou, uma decisão do Supremo em letra morta, que terá que ser revista para que se obtenha um mínimo de coerência jurídica de suas decisões.
Ninguém pensou que a credibilidade do Supremo, a longo prazo, era mais importante do que uma situação imediata que poderia ser resolvida pela política parlamentar, de que não deveria participar o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas a situação é tão delicada institucionalmente que prevalece a tese de que a estabilidade política é mais importante que a estabilidade institucional.
Esse tipo de arranjo político na interpretação das leis coloca em risco a credibilidade da mais alta Corte do país e, em consequência, a democracia brasileira. Já havia acontecido algo semelhante no julgamento do impeachment da então presidente Dilma, quando, sob a inspiração de Renan e a supervisão do presidente do STF, Ricardo Lewandowski, fatiou-se a Constituição para, numa interpretação tão criativa quanto a contabilidade que nos levou para o buraco, os direitos políticos dela serem preservados. Se Dilma fosse uma pessoa minimamente convivível, talvez até conseguisse escapar ilesa das ilegalidades que cometeu.
Foi esse raciocínio de “garantir a governabilidade” que levou à tentativa de aprovar a anistia ao caixa 2, diante da previsível avalanche de denúncias que surgirá com as delações da Odebrecht, que já começaram a vazar este fim de semana. Não serve de nada a manutenção de uma estabilidade fundada numa classe política desmoralizada, liderada por parlamentares cujas palavras dizem justamente seu contrário.
O senador Renan Calheiros, depois de afrontar a Justiça negando-se a assinar a comunicação oficial de seu afastamento da presidência do Senado, recebe a decisão do plenário que o manteve no cargo, mas não na linha de substituição da Presidência da República, com um comentário hipócrita: “Decisão do Supremo não se discute, cumpre-se”.
O senador petista Lindbergh Farias, diante da constatação de que o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, está envolvido em denúncias de grilagem de terra, pergunta abismado: “Aonde vamos chegar?”.
Diante do que aconteceu com Renan Calheiros, o presidente Michel Temer pode ficar tranquilo. Se para manter a governabilidade aceita-se contemporizar com Renan, o que não se fará para manter Temer na Presidência durante a travessia da pinguela?
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